DONA LOURDES, a mãe leitora!
- Lilis | Linhas Livres
- 3 de mai. de 2018
- 4 min de leitura
Atualizado: 19 de set. de 2018
Por Ivanira Matias
Fotos Arquivo Pessoal

Os livros sempre fizeram parte da minha vida, mesmo sem saber ler criava a minha própria história. Na minha casa, no interior do Rio Grande do Norte, tinha poucos livros, geralmente os que tinham eram emprestados dos amigos dos meus pais. Eles compravam livros de romance, revista de culinária, versos e cordel pra minha mãe, dona Lourdes, ler. Uma mulher linda, de cabelos longos, olhos castanhos, e que falava apenas quando necessário.
Onde chegava sua beleza e gentileza chamava atenção. Primogênita de 15 filhos dos meus avós maternos, Maria Flor e Cícero Paulino. Estudou até a antiga 4ª série. Na década de 1960 os estudos não eram tão acessíveis, principalmente para pessoas humildes e mulheres. Porém, Lourdes não era uma mulher qualquer. Era a princesa do meu avô Cícero, que fez o possível para sua filha estudar.
Mesmo com todo esforço do seu pai, ela não conseguiu seguir adiante com os estudos, precisava cuidar dos irmãos menores. Casou-se aos 23 anos de idade, teve cinco filhos, três meninas e dois meninos. O dom da leitura foi se aflorando, para os que não sabiam ler, era uma novidade. Sua fama pela leitura correu logo pelo povoado onde morava e também nos povoados vizinhos.
Todos queriam ouvi-la ler, não existiam muitos leitores na região. Quando era noite de lua cheia os vizinhos se reuniam o ao redor de uma fogueira e sobre a luz do luar minha mãe lia versos e cordel pra todos. Os anos foram se passando, meus irmãos crescendo, as dificuldades também. Lourdes já não tinha mais tanto tempo para leitura, esse tempo foi suprido pelo trabalho e pelo cansaço.
Trabalhar fora, cuidar da casa, filhos, marido, e ainda ser mulher sem deixar sua vaidade de lado não eram tarefas fáceis, precisava de muita força e até renúncias. Ficava cada vez mais difícil conciliar o prazer da leitura e sua obrigação como administradora do lar. Aos domingos, uma amiga da família, que morava em um povoado mais distante, nos convidou para passar uma tarde com eles.
Dona Arlete era uma senhora muito simpática e bondosa, morava com uma filha, Beatriz, e dois netos, Weliton e Willian. Eles não sabiam ler e minha mãe ficou logo animada porque sabia que dona Arlete sempre tinha um bom verso em casa esperando por ela. O acesso para casa de dona Arlete só era possível de carroça de boi, burro ou a cavalo, não tinha ônibus naquele povoado, considerado por ela, como o fim do mundo.
Severino, meu pai, colocou a carroça no burro, preparou um kit para viagem e lá fomos nós para mais uma aventura no meio do mato. Minha mãe pegou um livro de cordel, não recordo o nome do autor, mas lembro-me que era sobre mitos e lendas. As páginas do livro já estavam amassadas, tinha uma cor escura, puxado pra o marrom, um cheiro forte de livro velho.
Ela foi sentada na frente, junto com o esposo, ele guiando o burro e, ela toda elegante. Abriu o livro e começou a ler na carruagem mágica da minha imaginação. Como se estivesse ensaiando para um grande espetáculo, eu ficava atenta a cada entonação de voz, gesto da boca, olhar firme no livro, de vez em quando ela fazia uma pausa, respirava e mostrava as imagens pra gente.

Como eu amava tudo aquilo, como eu queria saber ler, só pra poder ler igual a ela. Chegamos à casa de dona Arlete, a mesa estava arrumada com uma toalha de chita de rosas vermelhas e verdes, um bule cheio de leite quente, café, bolo de moça, tinha muitas coisas gostosas na mesa, mas eu só conseguia ver o bolo de moça e as xícaras esperando cair o café dentro delas. Depois daquele café maravilhoso, nos reunimos, todos, embaixo de um pé de cajueiro, no quintal.
Minha mãe pegava um livro de romance e começava a viagem no mundo imaginário. Era tão mágico que a tarde passava rápido de mais e nem sequer víamos a noite chegar. Quando ela terminava de ler, alguns ouvintes estavam chorando de emoção. Antes de retornamos para casa éramos convidados a fazer mais um lanche.
Café fresquinho no bule preparado no fogão à lenha, meus pais agradeciam a família pela tarde de café com prosa e faziam com que os cincos filhos agradecessem também. De volta ao lar, o retorno era cansativo, meus irmãos menores voltavam dormindo, cansados de tanto brincar no quintal com os netos de dona Arlete.
Eu voltava quase sempre hipnotizada com as histórias dos livros de romances, mas logo voltava os olhos para as frutinhas silvestres e deliciosas, como cambuí e ubaia, uma fruta nativa da caatinga. Tenho boas lembranças daquela época, minha mãe já não se lembra de muitas coisas, costumo falar que a vida foi dura com ela, e penso que ela esquece porque na verdade não quer lembrar dos tempos árduos, mas para mim, eram doces.
Minha admiração por essa mulher cresce a cada dia e, pra que ela não se esqueça da heroína que ainda mora dentro do seu coração, eu faço questão de lembrá-la quem é Maria de Lourdes, a princesa de Maria Flor e Cícero Paulino, minha mãe. Ligo todos os dias para pedir sua bênção, faço perguntas como “lembra da fazenda Papagaio?”, “Lembra o nome da mãe de Beatriz?”, “Como senhora gostava de ler?”.
E ela fala “você se lembra de cada coisa”. Às vezes ela diz que estou inventado e dá risada, respondo que “se estou inventando é porque a senhora se lembra”. Não, ela não tem Alzheimer, está bem lúcida e ativa, graças a Deus. Apenas gosto de recordar o que ela parece detestar. Antes ela lia para os amigos, atualmente me pego lendo pra ela só para provocá-la. É meu modo de mantê-la atenta ao meu amor.
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Ivanira Matias
Ou, simplesmente, Nira, tem 39 anos, casada há 16 com um cara mais que especial, é mãe da encantadora Luanda e tem uma cachorrinha chamada Amora. Estudante de fisioterapia, pretende especializar-se em geriatria. Caseira, adora um bom filme na companhia da família. Gosta de desafios e de uma boa prosa. (Leia mais aqui!) Foto: San Paiva | Fotopoesia Ivanira também escreveu:
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