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MINHA TIA é a avó que não tive!

  • Foto do escritor: Lilis | Linhas Livres
    Lilis | Linhas Livres
  • 30 de jul. de 2018
  • 5 min de leitura

Atualizado: 3 de ago. de 2018

Por Leila Gapy

Fotos San Paiva | Fotopoesia e Arquivo Pessoal


*Li certa vez que para crer em Deus, basta ter filhos. O autor fazia uma reflexão sobre a utopia da proteção materna, referindo-se a infinidade de dores que não conseguimos privar os filhos. Concordo, mas acho que cremos em Deus quando amamos. Isso explica o jeito da minha tia Clarice. Ela tem 69 anos e é a sexta dos 16 filhos dos meus avós maternos, Thereza e Joventino Piovesan (já falecidos). Solteira, reside na casa dos patriarcas, cheia de trincas e móveis antigos, mas onde ela mantém o coração da família. É que apesar de não ter tido filhos, o que não faltaram foram os adotivos, já que os parentes revezaram seu colo durante os anos.

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A pele já está cheia de marcas, mas contam histórias de uma jornada feita de trabalho e auxílio ao próximo. Meus avós eram filhos de imigrantes italianos e, como muitos, firmaram-se nas lavouras da região sorocabana. Ex-combatente da Revolução Constitucionalista (1932), meu avô ficou surdo por conta de uma bomba e voltou, com mais dificuldade, à agricultura. A pobreza extrema trouxe-os, ele e minha avó, a Sorocaba (SP) no início da década de 1950, já com nove filhos, onde construíram a casa na Vila Progresso. Minha tia chegou aqui com 7 anos e viu muita coisa.


Na época, apenas um bar próximo tinha televisão. A fábrica Santa Rosália ainda funcionava e o caminho até lá era um imenso matagal, temido pelas crianças que alimentavam histórias da mula sem cabeça. Ela também viu os costumes se transformarem. Moça direita não saía desacompanhada e criança não tinha infância. Tanto que iniciou a carreira profissional aos 8 anos, vendendo alface. Não pode estudar, como aconteceu com os demais irmãos. Mas foi trabalhando de camareira num hotel que descobriu que a segurança do futuro estava nos estudos.

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Sem supletivo, aos 27 anos matriculou-se na antiga 5ª série do ensino fundamental. "Foi engraçado porque só tinha crianças e eu, velha já", brinca envergonhada. O esforço levou-a ao curso técnico de contabilidade, e a jornada era árdua. Dormia pouco, andava a pé, trabalhava e estudava, e ainda tinha os afazeres domésticos.


(Na foto, meus avós e os sete primeiros filhos - Clarice está no cadeirão)

Mas conseguiu passar num concurso público. "Foi um alívio", ela desabafa, referindo-se ao fato de ter de ajudar com as despesas da casa. Minha avó faleceu em 1978, os irmãos casaram-se, a família cresceu. E ela ficou na casa junto do meu avô e da minha tia Vera, que também não se casou. Juntas formaram uma super dupla. Faziam e decidiam tudo juntas. Lembro-me dela toda arrumada almoçando na sala - como faz até hoje -, enquanto assistia ao jornal, antes de voltar ao trabalho. Aos domingos, servia chá com torradas às visitas. Uma delícia, como bem lembram meus primos. Aposentou-se. Diz que não se casou porque não se apaixonou. Mas acho que foi providência divina.

Ela sempre socorreu meus tios, meus primos, minha família. Abdicou-se de si mesma para cuidar do meu avô a vida toda, mas principalmente nos três anos que ficou acamado antes de falecer. Vi seu desespero e tristeza ao perder sua fiel companheira, minha tia Vera, vítima do câncer aos 46 anos. Mas a sabedoria a fez adaptar-se às imposições da vida. Por isso ela não tem muita rotina. Tem alguns problemas de saúde decorrentes da idade, mas é mais disposta que muitos. "Na minha idade, cada dia é um dia e tem de ser aproveitado como dá. Já segui muitas regras", define. Às vezes, passa dias sem visitas, o que a fez aprender a conviver com a solidão. Mas, em outras, a casa fica cheia.

Quando isso acontece, ela segura a pessoa engatando uma conversa atrás da outra, assumindo a carência de papo. Há 8 anos fui morar com ela. Gerei e criei minha filha Catarina sob seus olhar. Pude vê-la voltar a ser criança e permitir-se fantasiar ao brincar com a minha pequena, como faz com meus priminhos também. Ela fala dos sobrinhos como filhos e netos. Minha tia não é perfeita, briga e irrita-se às vezes, como uma verdadeira italiana, mas sabe mais sobre maternidade e casamento que muita gente. A vida tornou-a matriarca por direito. Ela tem a paz. Vê a morte como parte da vida; a doença como a chance de despedida; os problemas como oportunidade de crescimento.

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Ela sorri e não perde a chance de se reunir com os seus. Cheguei à conclusão de que conviver com idoso é ter uma enciclopédia da vida sempre à mão. Nós já dividimos tristezas, choramos e rezamos juntas. Rimos muito também, porque apesar de tudo, ela é atrapalhada. Mas sei que ela é esteio dos demais também. As corujices são muitas e outras ainda estão por vir. Amo todos os meus tios, mas tomo a liberdade de dizer, em nome de muitos também, que foi a tia Clarice que me (ou nos) ensinou a ir mais além para executar os diferentes papéis que a vida impõe. Agora ela iniciará uma nova etapa; todos nós na verdade. Mas tenho certeza que ela superará e nos servirá de exemplo, mais uma vez. Afinal, "tudo passa e só as lembranças boas ficam", como ensina.


(Na foto acima, em 2007, Clarice de verde e os irmãos, da esquerda para direita, à cima: Mário, Cláudio, Vitório, Nena, Olga - falecida, Clarice. Da esquerda para direita, ao centro: Eurídice - falecida, Teresa. Da esquerda para direita, abaixo: Regina, Leonir e Clariovaldo).


*Este texto foi originalmente produzido para a coluna Corujice do antigo caderno ELA, do jornal Cruzeiro do Sul, de Sorocaba (SP). A publicação ocorreu em 18 de janeiro de 2013 (veja aqui!). O conteúdo não foi atualizado, em respeito à publicação original e contexto. Atualmente, Clarice tem 74 anos e a casa, que ilustra a primeira foto, descrita no início do texto, já não existe mais. Devido o risco que oferecia, foi demolida para dar lugar a uma nova residência, há dois meses em construção. Mas a aposentada reside no mesmo terreno, na segunda casa construída pelo pai, Joventino, na década de 1970. Clarice prossegue ensinando a resiliência.


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Leila Gapy

É jornalista por formação, encantadora de memórias por vocação e professora, sua nova paixão. Idealizadora deste blogue,  é especialista em Jornalismo Literário e mestranda em Comunicação e Cultura. Pesquisa texto artístico seriado e ama ler histórias reais. Trabalhou como repórter em jornal impresso por 15 anos, mas já fez de tudo na imprensa escrita. Desde pequena, adora documentar a vida, para não deixar beleza alguma escapar. Fala bastante, mas é escrevendo que se desvela e revela. Com sangue italiano e bugre nas veias, compõe uma família apaixonada e cheia de esquisitices. Tem 36 anos, é casada com Alessandro e juntos têm uma filha, Catarina, sua inspiração.

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