THEREZA, a avó teimosa!
- Lilis | Linhas Livres
- 21 de jul. de 2018
- 7 min de leitura
Atualizado: 19 de set. de 2018
Por Bruna Camargo
Fotos Arquivo Pessoal
Dona Thereza era uma figura. De testa franzida, cabelos impecavelmente tingidos de preto e sempre vestida com a camiseta esportiva do grupo da terceira idade. E se ela colocava algo na cabeça, ninguém mais tirava! A teimosia estava em Thereza sem que fosse uma “consequência da idade”. Quem a conhecia, sabia!

Teruko – opção de nome japonês – para as amigas, Badi – apelido derivado do japonês batian, que significa avó – para os familiares, Thereza foi a primeira do que hoje minha família chama de “as mulheres Yamaguti”, embora o sobrenome de solteira dela fosse outro.
As mulheres Yamaguti têm sangue fervilhante, opinião forte e paciência escassa. Não dependem de homens e sabem o que querem. As mulheres Yamaguti têm muito a agradecer à precursora do que atualmente temos orgulho de declarar ser.
Origens
Thereza nasceu no dia seguinte ao Natal de 1935, em Aldeia de Carapicuíba (SP). Descendente de imigrantes japoneses, cresceu em uma família tradicionalmente patriarcal ao lado de duas irmãs e cursou Corte e Costura, como sua geração esperava que fizesse.
Aos 16 anos, teve a oportunidade de visitar o Japão, a terra natal de seus avós. Uma viagem de três meses de navio, conforme ela constantemente relatava. Três meses acordando com vista para o mar, em meio a diversas pessoas que buscavam resgatar suas origens e visitar parentes na Terra do Sol Nascente. Ela nunca me contou como foi a estadia no Japão – o trajeto pareceu-lhe mais interessante.
No auge da adolescência, Thereza apaixonou-se. Para sua infelicidade, o rapaz era chinês e sua família não aceitaria a entrada dessa nacionalidade na casa de sangue japonês. Na época, o amor era evidenciado pela troca de olhares, pelos toques de mão roubados.
O nome dele ela não se lembrava na última vez que conversamos, mas a fotografia em preto e branco de um homem de olhos grandes e feição sisuda ela guardava com carinho junto ao material de costura.
De volta ao Brasil e passados seus 20 anos – como não estava casada ainda? – conheceu Akio. Embora de descendência japonesa, o rapaz era da cidade de Hiroshima, cujos habitantes declaravam-se rivais de Kochi, local de origem da família de Thereza. Que vida amorosa complicada! Mas ela insistiu e, em 1959, o casal subiu ao altar – a foto dos noivos segue pendurada no quarto em que ela dormia.
Da relação nasceram três filhas: Tânia, Ilsa e Rosana. Thereza botava ordem na casa cheia de mulheres; segundo contam as histórias de família, as três tiveram de aprender desde muito cedo a serem independentes.
Limpavam a casa, alimentavam-se e, assim que atingia a idade, corriam atrás de estudo e trabalho. Enquanto isso, o trabalhador, gentil e bondoso Akio deixou-se levar pela bebida e, tristemente, definhou ao som de Missora Hibari, Vicente Celestino e Nelson Gonçalves, deixando a esposa viúva em 1995. Apesar disso, as três filhas lhe deram nove netos – e é aí que as boas histórias começam.

Convivência
Bacaiarô talvez tenha sido a primeira palavra em japonês que aprendi e a que mais ouvi em toda a minha vida. Para o português, traduzimos como “bobo (a)”, e era o que Thereza mais falava – para tudo e todos, em diversas situações. Nunca soou pesado ou ofensivo – e, atualmente, lembrar das situações apenas provoca risadas nas conversas de família.
Embora os bacaiarôs escapassem constantemente da boca dela, minha avó amava muito os netos. Como tradicional integrante do grupo da terceira idade, lembro-me das viagens que ela fazia para todos os cantos do Brasil e que, na volta, resultavam em presentes para todo mundo. Aguardávamos ansiosos para que ela desfizesse a mala e entregasse chaveiros, camisetas e os mais variados tipos de souvenires.
Thereza não era o tipo de avó “Dona Benta”, que colocava um avental e ia para a cozinha aos domingos para preparar um grande banquete. Mas se tinha duas coisas que ela fazia bem demais eram sushi e bolinho de chuva. Que delícia! A boca salivava quando chegávamos na cozinha e ela estava misturando arroz com vinagre na bacia bege.
“Posso pegar um pedaço de ovo?”, eu sempre pedia ao ver os ingredientes do sushi. Ela deixava pegar um, mas enquanto conversávamos, eu dava um jeito de surrupiar mais. Acompanhei o processo diversas vezes, mas se tem uma coisa da qual me arrependo nesta vida é de não ter aprendido a fazer o sushi da receita dela!
Não fui uma adolescente fácil para minha avó; não tínhamos uma relação incrível de muito amor, paz e cumplicidade. Duas mulheres Yamaguti tendem a explodir quando a convivência é exagerada, e isso talvez tenha prejudicado o relacionamento que eu poderia ter construído com ela. Mas, em 2012, as coisas mudaram.
Despedida
Não lembro quando ela recebeu o diagnóstico, como ela recebeu a notícia e como a família mobilizou-se para lidar com a situação. Sei que, em 2012, no meu último ano do Ensino Médio, minha cabeça estava no vestibular e não me espantei ao saber que minha avó teria de tirar um tumor do estômago – afinal, ela ficaria bem, não?
Sempre tivera problemas de pressão alta e nunca deixou de voltar para a casa firme e forte para me chamar de bacaiarô. Mas naquela vez.... primeiro, ela demorou a sair do hospital. Depois, quando chegou em casa, não parecia a Badi com a qual eu estava acostumada. Deitada na cama, quieta, com os olhos pesados e pele mais pálida.
A família montou uma operação para acompanhar a recuperação da minha avó. As filhas dela começaram a se revezar para dormirem no mesmo quarto e, com o tempo, as netas aderiram à prática. Era preciso assisti-la dia e noite, garantir a alimentação adequada e a ingestão dos remédios, massagear as pernas, além de acompanha-la em leves caminhadas pelo quintal. Não foi o suficiente; chamamos cuidadoras.
Lembro vividamente das noites em que cuidei da minha avó – às vezes só, às vezes com minha mãe. Nós duas sozinhas na casa que cresci mas já não morava. A rotina era a mesma todo sábado. Eu chegava do trabalho e a cuidadora ia embora; então, ficávamos nós duas assistindo TV até o anoitecer.

Quando minha tia – vizinha – e eu ajudávamos minha avó no banho – a essa altura, ela mal conseguia se locomover, o que exigia o banho em uma cadeira. Então, eu esquentava seu jantar e preparava um suco de maracujá – líquido que agia com efeito placebo, uma vez que ela pensava ser calmante.
Durante a madrugada, eu acordava e a olhava, esperando que o peito fizesse o movimento da respiração. Às vezes, ela gemia – talvez de dor ou em meio a sonhos – mas não acordava. Quando acordava, tentava levantar sozinha com sua bengala para ir ao banheiro – quantas vezes dei-lhe broncas no meio da noite devido o risco!
Nos domingos de manhã, ela pedia para ser colocada de frente ao hotoke – espaço no qual havia fotos de familiares mortos, incensos e cinzas – para fazer uma oração aos seus antepassados. Em seguida, eu lhe dava café com leite e um pãozinho antes de sairmos para caminhar.
Eu a segurava por trás e permitia que suas pernas fizessem o esforço; foi a primeira vez que percebi como nosso corpo consegue fazer coisas incríveis – que podem ser interrompidas por enfermidades a qualquer momento. Então, ela sentava em sua poltrona na varanda, junto ao Sol, e lia seu pequeno livro verde em japonês.
Entre noites boas e ruins, delírios e brigas, choros de desespero e murmúrios de agonia, e idas e vindas no hospital, 10 meses se passaram. Pareceu uma eternidade na época, mas hoje vejo como foi curto o espaço de tempo entre ela estar super bem e super mal.
Foram nas noites insones que passamos juntas que ela me contou sobre a viagem de navio, o chinês e meu avô. Foram também naquelas noites que ela perguntou quem eu era, onde ela estava e por que tinham tantos insetos (imaginários) subindo pelas paredes.
Então, ela foi para o hospital pela última vez. Meu pai e minha tia iriam visitá-la naquela noite de quarta-feira e abandonei meus exercícios de geometria analítica para ir também. Thereza estava no quarto do tratamento paliativo, no qual, atualmente sabemos, deixam pacientes que não têm mais cura e que os familiares optam por não reanimarem em caso de óbito.
Quando a vi, meus olhos encheram de lágrimas. Não sei dizer o que senti, mas quando vi minha tia pegando na mão fraca de minha avó, doeu tanto em mim. Tentei ser forte, mas vê-la com tantos fios ligados ao seu corpo, com os olhos fechados e respiração difícil foi demais para uma menina de 17 anos.
“Eu vou embora domingo”, ela murmurou para o meu pai. “Tomara”, pensei, desejando que ela saísse do hospital e voltasse para casa o mais rápido possível.
Thereza Yamaguti realmente foi embora, conforme avisou, naquele domingo, dia 28 de abril de 2013. Nunca vou esquecer do telefone ecoando estridente em casa, durante a madrugada; na outra linha, os médicos pediam que um familiar fosse ao hospital. “Não acredito que ela fez isso com a gente”, chorei, egoísta, abraçada em minha mãe.
E continuei chorando, a cada vez que pensei nela por muito tempo após isso. A noite mal dormida de uma família inteira amontoada nas cadeiras do salão do velório ficará para sempre marcada em minhas lembranças. Ver o caixão sendo fechado com o frágil e pequeno corpo de minha avó foi uma das maiores dores que já senti.
Ir embora do cemitério foi uma das sensações mais estranhas que já tive. Algumas semanas depois, sonhei com ela. Estava forte, de pé e sorrindo. “O pior já passou, agora é a melhor parte”, ela me disse. A partir daí a minha cicatrização começou. Mas, até hoje, se o telefone toca de manhã, meu coração gela.
E, até hoje, apesar de amá-la imensamente, de ainda seguir seus ensinamentos e ter tido o privilégio de cuidar dela um pouquinho, eu lamento não te-la amado mais enquanto pude.
Para este Mês dos Avós, desejo que cada pessoa lembre da importância que esses entes tão queridos têm em nossa família. Abracem, beijem, riam, ouçam, tenham paciência. Não percam o momento, não subestimem a perenidade do ser humano. O homem nasceu para amar e é isso que devemos fazer a cada instante.
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Bruna Camargo
Leitora voraz e pilateira insaciável, brinca que tem três empregos aos 22 anos – jornalista, pesquisadora e professora. Sonha em viver viajando e contando histórias por meio da escrita. Prestes a se formar, aprofunda os estudos em Jornalismo Literário e feminismo. (Leia mais aqui!) Foto Daniel Yamaguti.
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