A LUZ do pertencimento!
- Lilis | Linhas Livres
- 5 de nov. de 2018
- 5 min de leitura
Atualizado: 17 de jan. de 2019
Cerimônia das Velas, no Cemitério Municipal de Mairinque (SP), atrai milhares de pessoas há 21 anos e consagra-se como maior homenagem aos mortos, no interior paulista
Por Leila Gapy
Fotos San Paiva
“Pelos prados e campinas verdejantes eu vou, é o Senhor que me leva a descansar. Junto às fontes de águas puras repousantes eu vou, minhas forças o Senhor vai animar. Tu és, Senhor, o meu pastor. Por isso nada em minha vida faltará! Tu és, Senhor, o meu pastor. Por isso nada em minha vida faltará!”

A lua já faz morada no céu marinho e divide o infinito com as estrelas que iluminam o caminho. As milhares de pessoas que andam a pé pelas vielas de asfalto irregular vão todas, num silêncio tranquilizante, para a mesma direção. O clima fresco revela o verão que se antecipa para novembro, denunciado pelo dia que fora quente. Carros com giroflex ligados e flores coloridas sinalizam a entrada. Ao cruzar o enorme portão principal - de ferro maciço antigo, feito para proteger a memória dos que já se foram -, um novo cenário minuciosamente iluminado se apresenta. São as 12 mil velas, simetricamente organizadas a cada dois metros, que auxiliam a locomoção pelas inúmeras e estreitas passagens numeradas que outrora abrigaram a tristeza da perda, mas que agora dão lugar à esperança da paz.
É Dia de Todos os Santos e Mártires, conhecidos ou anônimos, data que antecede a homenagem aos finados e que tem por origem lembrar daqueles que deram suas vidas pelo próximo, conforme a tradição católica. Por essa razão o Cemitério Municipal das Luzes, em Mairinque (SP) – a 68 km da capital -, celebra a Cerimônia das Velas, realizada sempre no dia 1º de novembro, a partir das 19h. E lá se vão 21 edições desde que o administrador do local, Edmundo de Souza Figueiredo, teve a ideia. Era meados da década de 90 e, exatamente na véspera de Finados, ao deixar o cemitério, ele observou do lado de fora, pelo muro, que havia várias velas sobre alguns túmulos. Como a noite já havia caído, foi possível observar, nas palavras dele, a beleza proposta pelas luzes das chamas.
Nascia a cerimônia, com a proposta de acolher a comunidade, propor reflexão espiritual e, assim, desmistificar o conceito cultural de que o local está associado somente às dores, às tristezas, ao desconhecido ou ao mal, propondo assim conscientização e carinho pelo espaço. Por essa razão, uma tenda comprida, alinhada no cruzamento das duas passagens principais propõe um assento aos recém-chegados. Uma banda cristã testa o som com trechos de músicas em louvor a Nossa Senhora Aparecida. Da primeira fileira de cadeiras do corredor de entrada é possível observar toda movimentação. No altar coberto, voluntários ajeitam a bíblia e as velas. Ao longe, à direita, a capela de São Benedito se ilumina com faróis. À esquerda, a capela em louvor a Nossa Senhora do Carmo brilha em azul.
A assembleia toma o espaço. A procissão com os coroinhas, acólitos, ministros da Eucaristia e o padre, Antônio Carlos Ribeiro, se aproxima para dar início à celebração. Todos se levantam. É chegada a hora de lembrar e rezar pelos queridos que já partiram. Pároco da igreja Nossa Senhora Aparecida, Ribeiro celebra a missa no local há dois anos e defende que “a Palavra de Deus deve ser levada a qualquer lugar, para quem queira ouvi-la”. Para ele, propor reflexão sobre todos os santos é uma forma de pensar naqueles que doaram suas vidas diariamente por nós, no anonimato, e que viveram uma vida de santidade, buscando a luz divina. É por isso que, durante a missa, o padre se vale da liturgia do dia:
“Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. Bem-aventurados os humildes, porque herdarão a terra. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos. Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus. Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus”, Mateus, 5: 3-10.
As palavras do pastor, como na música das campinas, ecoam por todos os cantos. Durante o sermão, o religioso lembra que “bem-aventurados os que despertam para este tempo e para a necessidade de um vida mais santa”. Já espalhados, muitos fiéis se ajeitam sobre os túmulos de seus entes queridos para ouvir a Palavra. É nesse momento que Wilson Massante, de 50 anos, abraça a filha Laura, de 18 anos. Eles acendem as velas sobre a lápide dos pais dele, ouvem o sermão e aguardam a queima de fogos. É um momento íntimo e singular, afirma, específico para reflexão espiritual e de preces pelos que já se foram. Não demora muito, uma fila de voluntários se ilumina em direção ao mirante recém-criado em louvor de Nossa Senhora Aparecida.

Músicas instrumentais complementam o ambiente e dão, inclusive, a sensação de espetáculo. Não é para menos, fogos iluminam a capela de Nossa Senhora do Carmo, atrás do altar, e depois a de São Benedito. Na sequência, o Mirante de Nossa Senhora Aparecida é amplamente iluminado por mais de 10 minutos de queima. Neste momento, já no encerramento da celebração, as pessoas se espalham pelo cemitério a fim de prestar a última homenagem àqueles que deixaram saudade. Outros, porém, rumam para as duas sepulturas mais visitadas. A primeira, mais distante, ao alto, para além da capela de Nossa Senhora do Carmo, Joaquim de Oliveira recebe homenagens. Joaquinlão, como era conhecido, personagem folclórico, morreu em 1979, aos 77 anos.
Negro e alto, ele tinha problemas mentais causados após ser espancado pelo padrasto quando tinha 7 anos, ficou conhecido pela personalidade infantilizada e por ser o fogueteiro da cidade, atuante em todas as cerimônias religiosas. Por essa razão, o túmulo, carinhosamente construído pela comunidade, é similar à fachada da igreja matriz de São José, onde ele costumava passar a maior parte do tempo. A outra sepultura, mais próxima do portão principal, já na saída, é de Maria de Lourdes Rêgo, uma menina de 8 anos que morreu queimada em 1951, quando jogou álcool no fogão à lenha e queimou-se. No local, o mausoléu que se assemelha à uma casinha de bonecas, recebe flores e brinquedos com frequência. Há quem diga que já recebeu graças por sua intercessão.
As luzes
Para dar conta da estrutura, que vai das velas, distribuídas por todo o cemitério em suportes manualmente confeccionados com garrafas pet e argila, a fim de evitar qualquer acidente, da missa com tendas, cadeiras e queima de fogos de artifício; do agendamento de equipe da Polícia Militar, dos bombeiros, da Defesa Civil, além da lista de comerciantes que se instalam ao redor do prédio para comércio de flores e alimentos, um bingo passou a ser realizado no Ginásio de Esportes mairinquense para arrecadação de fundos. Isso porque, desde a primeira edição, muita coisa mudou. Além do número de voluntários, que atualmente ultrapassa mais de cem, e que executam uma força tarefa na organização e limpeza do espaço; o índice de vandalismo nas lápides e túmulos caiu em simultâneo com o aumento no número de participantes do evento. O que para o idealizador significa ter alcançado a proposta inicial e criado na comunidade junto ao cemitério o sentimento de pertencimento.
_
Confira também, pela mesma autora:
***

Leila Gapy
é jornalista por formação, encantadora de memórias por vocação e professora, sua nova paixão. Idealizadora deste blogue, é especialista em Jornalismo Literário e mestre em Comunicação e Cultura. Pesquisa texto artístico seriado e ama ler histórias reais. Tem 37 anos, é casada com Alessandro e juntos têm uma filha, Catarina, sua inspiração. Foto: San Paiva
Leila também escreveu:
*Curta nossa página e fique sabendo das novidades!
**Conheça os demais autores aqui!
Comments