Minha AVÓ, Minha MÃE e EU
- Laura De Aro
- 25 de jun. de 2020
- 3 min de leitura
Atualizado: 5 de ago. de 2020
Texto pela Psicóloga Laura De Aro
Ilustração por Brunna Mancuso
22 de maio de 2018 - Feliz Aniversário

Esse telegrama tem data e hora. Chegará em suas mãos quando talvez eu não estiver mais aqui nesse plano mundano, mas escrevo as memórias para aquecer o coração por tudo e por todas as mulheres que ainda continuarão. Espero que esse telegrama fique guardado em sua gaveta como uma receita de bolo que em tempos em tempos, quando o coração estiver aflito, você possa ler e se aconchegar. Não venho lhe dizer a respeito de regras ou orientações corretas sobre como se deva viver nesse mundo. Venho dizer para que encontre outras mulheres com as quais possam te acompanhar nessa trajetória. Bem, olhe para a sua mãe, quando ela tinha sua idade, ela participava das nossas conversas entre as vizinhas do bairro, enquanto tricotávamos. Tinha vezes que se aventurava nas agulhas compridas de tricô e dizíamos o tempero que colocávamos, não só na vida com nossos maridos, mas também nas receitas que inventávamos por falta de um ou outro ingrediente. As histórias se completavam com as atrapalhadas experimentadas na cozinha. As atrapalhadas de sonhos que não vivemos. Pois bem, tive olhos cansados, mas não menos alegres. Tive olhos cansados pelo labor de se trabalhar em casa com os filhos e com a cozinha. O muito que aprendi sobre o trabalho de uma mulher. Tive o cuidado por falta de memória ou de lucidez, você sabe minha neta, vai se chegando à idade e com o tempo chega o esquecimento. Tive o cuidado de anotar em um pequeno caderno bordô o tanto que aprendi das receitas que fazia, mas também dos sentimentos que compartilhava com as reuniões do tricô. Depois que nossa reunião do tricô acabava, meu coração apertava e então, eu olhava bem nos olhos de sua mãe e dizia para ela ganhar o mundo. Ganhar o mundo significava trabalhar fora de casa e gerenciar suas contas, sejam elas para comprar presente para as crianças ou para ela mesma. Ganhar o mundo, era ganhar a própria vida. Sua mãe continuou em certa medida. Ainda me conta do cachecol colorido que fez com a nova lã que comprou no centro ou do macarrão alho e óleo que acrescenta brócolis e come com carne. Receita simples e prática, mas era a receita que virou tradição dos domingos. Os domingos com tardes de conversação. E por fim, riamos. Foi a primeira que se formou em nossa família e digo de formação acadêmica feminina. Sua mãe é médica pediatra. Ficou viúva cedo e agarrou as mangas para lutar na vida. Sempre muito determinada e temperamental. Raízes que firmaram o som do vento do sul. Minha neta querida, o fim da vida nesse hospital deixa minhas memórias embaraçadas. Sua mãe conseguiu emprego em Santa Catarina e lá pousou. Sua mãe e seu espírito nômade. De lá para cá. Mas, sempre me diz com olhar cabisbaixo seu desejo de ter feito mestrado. Contudo, a vida vem com seus empurrões. Seu pai ficou doente e sua mãe teve que abandonar sua a formação. Alegria em saber que muitas vezes era motivo de briga, mas também de sabedoria. Sua mãe soube extrair aquilo que eu vivia dizendo. Para viver. Viver o mundo que habitamos e a época que nos espera. Ela mesclou. Faz reuniões com as amigas com vinho e um bom prato de comida para contar as atrapalhadas da vida, dos maridos, das crianças. Compartilha com as amigas o livrinho bordô de receitas. Minha neta, se estiver ainda aí, pergunte para a sua mãe sobre o livrinho bordô e guarde. Continue sua formação tão esperada no mestrado. E não se esqueça: desobedeça! Ontem mesmo aqui, no hospital me mostraram pelo celular seus textos! Apenas continue. Por muitos anos tenho usado essa máquina de escrever. Minha neta, sim. Eu sei que você não sabia nem mesmo sua mãe. Eu até tentei passar essa ardência pela escrita, mas sua mãe não se interessou. Por isso, entrego esse presente para que assim você possa seguir sua carreira. Quem sabe acadêmica. Quem sabe de escritora. Ou quem sabe de uma solitária que fumava cigarro no quarto dos fundos. Escrevendo com doses de cachaça.
Com amor,
Vó Carmela
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