EDUCAÇÃO: a via de mão única!
- Lilis | Linhas Livres
- 6 de abr. de 2020
- 12 min de leitura
Atualizado: 10 de abr. de 2020
*Este é o 10º texto (9ª reportagem) da Série Feminismo e aborda a educação multidisciplinar como único meio para igualdade social*
Por Leila Gapy***
Fotos Pâmela Ramos e Ilustração Radríguez**

Era manhã de uma terça-feira ensolarada de início de março, as notícias sobre os avanços do coronavírus no Brasil tornavam-se rotineiras e pautavam os primeiros passos dos novos hábitos. Na sala de espera do Centro Especializado de Reabilitação do Autor em Violência Doméstica (Cerav), idealizado e criado pelo Centro de Integração da Mulher (CIM-Mulher), o sol crescia pela janela sobre os móveis e uma voz masculina, cada vez mais forte e crescente, constrangia o atendente - uma rapaz de 20 e poucos anos que me olhava. Para disfarçar o que parecia ser um desentendimento interno, ele me perguntou se queria café. Antes de responde-lo, ele saiu em disparada e retornou na sequência com uma garrafa térmica. Eu agradeci, mas rejeitei. Já estava ansiosa o suficiente para conhecer o projeto e para tentar descobrir o que acontecia em algum outro ambiente do prédio.
A fotógrafa chegou, uma jornalista recém-formada que expunha a jovialidade no sorriso. Começamos a conversar e me distraí. Eu sabia que o Cerav atendia homens agressores que respondiam por violência doméstica, então suspeitei que a gritaria (de uma pessoa só) tratava-se de um atendimento. Puxei papo sobre a festa de formatura dela, recém-ocorrida, e os novos caminhos da profissão. Demos até risada. Mas a voz masculina que vinha da sala ao lado crescia e tornava-se cada vez mais acalorada. Estávamos os três disfarçando o constrangimento, mas de repente tornou-se impossível. Fora do alcance dos meus olhos, mas perceptível, um homem abriu a porta próximo da recepção e esbravejando deixou a sala que estava. Chamava alguém, provavelmente uma mulher, de intrometida.
“O que você está pensando? Você acha que porque é psicóloga, assistente, sei lá, sabe da minha vida mais que eu e pode me dizer o que fazer?”, gritava. Uma voz calma e feminina tentava tranquiliza-lo e informa-lo. “Eu não estou dizendo o que você deve fazer, eu estou sugerindo, é uma conversa. Estamos aqui para isso”, dizia ela enquanto simultaneamente ele tentava encobrir, a todo custo, a voz dela. “Que conversar o quê?! Você acha mesmo que porque é mulher e formada pode me dizer o que fazer ou achar que me conhece? Eu não trabalho que nem louco por 12 horas para chegar aqui e ter que ouvir ordens de uma pessoa que não sabe da minha realidade”, esbravejava. Mesmo assim ela prosseguia: “Volte para a sala, vamos conversar”.
Ele entrou na recepção e ao nos ver pareceu surpreso. Por alguma razão que ainda desconheço, medo ou respeito à intimidade dele, eu e a fotógrafa não o olhamos e prosseguimos conversando como se ele não estivesse ali. Foi quando ele atravessou a recepção, passando pela minha frente e seguindo até o bebedouro. Nos poucos passos que deu, retomou a fala ainda mais alterada, desta vez, nitidamente tentando encobrir o som da nossa conversa, suspeito que com a intenção de chamar nossa atenção para o problema dele. “Eu não vou voltar para sua sala pra continuar apontando meus erros, como se só eu tivesse errado na vida, não vou”. A voz feminina, um pouco distante de nós, próxima da porta da recepção, prosseguia baixa e intercedendo.
“Volte, vamos conversar. Se você não voltar e não concluirmos o papo, não poderei assinar o protocolo desse encontro e você terá que voltar mais uma vez”, explicava. Ele prosseguia gritando e defendendo seu ponto de vista. Num relance de olhos, pude vê-lo olhando pra mim, como se quisesse apoio. Retomei a fala com a fotógrafa, tentando nos manter alheias à ocorrência. Ele encobria minha voz e, confesso, fiquei temerosa. Era um homem da minha altura, cerca de 1,75 m, com uma barriga saliente e braços fortes. Sua voz ecoava na pequena recepção, fazendo-o parecer maior e mais forte. Estava vermelho de raiva e mesmo bebendo água, a pausa para a respiração era ofegante. De quem estava com pressa para concluir algo importante.
Sem nosso apoio, suspeito, retomou a direção da saída cruzando a sala enfurecido. Imaginei-o dentro de casa, talvez com um filho pequeno próximo. E senti uma vontade profunda de chorar. O que fazer? Pensei. E se fosse comigo? E se eu fosse a esposa, o que me restaria? Pensei naquele descontrole. Se ali, num local onde ele cumpre pena, ele estava daquele jeito, imaginei como ele ficaria contrariado num local onde se sentisse confortável, como a própria casa. Uma segunda voz feminina rompeu meus pensamentos e falou para ele se acalmar e deixar a recepção. Ele foi até a porta de saída ainda gritando, oferecendo resistência ao diálogo. A discussão – se é que posso chama-la assim -, durou mais uns 10 minutos ali, eu acho. Não lembro porque percebi que meu coração batia acelerado e parei para observar o fenômeno que me acontecia.
Percebi que a fotógrafa me encarava incrédula com a situação, talvez esperando de mim alguma atitude de apoio às duas profissionais. Eu não consegui, sorri sem graça para ela e ficamos em silêncio, olhando para o tapete. O homem saiu do prédio e parou na garagem, ainda não muito distante de nós. A discussão ainda prosseguia, mas mais branda, pouco, mas mais branda. Um carro passou lentamente na rua e o homem que berrava abriu uma brecha no que dizia às funcionárias para cumprimentar o motorista. Falou “oi” alegremente, perguntou alguma coisa familiar, justificou o comportamento dizendo que estava resolvendo problemas, no estilo “sabe como é, né?” e se despediu do conhecido com o envio de um abraço. Informou as funcionarias que depois concluíam e deixou o prédio.
Minutos depois escutamos todos o cantar de alguns pneus, indicando a saída em velocidade. O atendente rompeu o silêncio me informando que logo me atenderiam. Eu olhei para a fotógrafa e ela ainda me encarava quando disse: “Senhor, o que foi isso?”. E me dei conta que um furacão havia passado por nós, tão ameaçador quanto um de escala cinco (5) na tabela Saffir-Simpson. Parecia até que a discussão tinha sido comigo, me sentia até estranha, uma mistura de tristeza com angústia me habitava. Ficamos os três, novamente, em silêncio. Dessa vez, para nos recuperar, imagino eu sobre eles. Uma mulher disse à outra: “Já volto!”. A segunda concordou e entrou na recepção. Era pequenina, franzina, mas na mesma proporção transmitia ternura. Olhou para mim e disse: “Oi, você é a jornalista, né? Já voltamos, ok?”.
Eu concordei sem graça e novamente uma vontade de chorar se fez presente. Tentei me distrair, contar uma bobagem à fotógrafa, rimos juntas, mas silenciamos novamente. Me permiti então não prosseguir o papo-furado e apenas silenciei, para me acalmar. Então me ocorreu que, de alguma forma, o que presenciei, foi oportuno. Era a materialização do que milhares de mulheres vivem, todos os dias, expondo assim a importância de instituições como o Cerav – previstas no inciso 35 do artigo 5º da lei Maria da Penha, onde o Terceiro Setor tem de atuar juntamente com Estados e Municípios para empregar a legislação.
Afinal, penso que deve ser difícil ter tanta agressividade dentro de si mesmo, além da dificuldade em se expressar e coloca-la para fora. Comecei a filosofar sobre essa engrenagem da nossa atual vivência contemporânea. Uma vida que muito nos obriga à perfeição e pouco nos permite falhar, essa sobrevida que não nos ensina a lidar com a frustração e com a vontade arrebatadora de berrar. Ocorreu-me a cena de um bicho selvagem enjaulado e me imaginei assim, presa a uma camisa de força com toda minha fúria animalesca por sair. Na sequência me lembrei da famosa reflexão de que, o que nos faz humanos é justamente a diferença dos demais animais, o poder de escolha que temos sobre quem queremos ser.
Meus pensamentos foram interrompidos pela mesma mulher que nos pediu para aguardar. Seguimos até uma sala próxima, onde a outra funcionária nos aguardava já sentada - uma mulher igualmente pequena, mas com postura assertiva. Sentamos, eu e a fotógrafa, num sofá à frente dela, aconchegante. O ambiente era como um consultório terapêutico. Fiz questão de me acomodar, como se fosse uma paciente, antes de começarmos a entrevista. Expliquei quem éramos e o que queríamos. Então fiz a primeira pergunta: “vocês estavam com medo dele?”.

“Já fui ameaçada de morte. Às vezes, como nesta ocorrência, eles se exaltam e, algumas vezes são intimidadores. Mas meu ofício é esse, informar, mediar, facilitar para uma compreensão maior. É exatamente para propor essa transformação que estamos aqui”, explicou-nos Tatiana Festa, assistente social do Cerav-Sorocaba desde a criação, há 5 anos, puxando para a conversa a colega ao lado, a psicóloga Ingrid Fonseca, funcionária há 3 anos da instituição. As duas estão na linha de frente do trabalho educativo que há anos é discutido nas mais diversas esferas, mas que somente na última década foi desenvolvido. "Durante muito tempo a violência doméstica foi tratada com atendimento à vítima. Mas o agressor migrava para outra relação e repetia as ações abusivas. Foi preciso olhar para ele e propor algo para a mudança desse homem”, explicou Ingrid.
A assistente disse que a dupla desempenha papel distinto, mas em conjunto, como do “policial bom e do policial mau”, retratado nos filmes estadunidenses. “Eu sou a bruxa má, sou a que informa, ensina as regras, faz as primeiras abordagens. Sou a ‘policial mau’”, brincou com o exemplo. Ingrid emendou, disse que talvez por uma questão de personalidade ou mecanismo funcional, por ser psicóloga, a relação dela com os pacientes é mais tranquila.
“Por natureza falo baixo mesmo e minha função é ouvi-los, né? Deixo-os falar (feito sangria). Esta é a minha função. E depois de falarem, eles começam a ouvir”, detalhou ela que explicou-me em seguida que o Cerav não trata os agressores, ou seja, eles não fazem terapia em suas dependências. Segundo ela, trata-se de uma abordagem psicossocial, ou seja, de uma proposta de reflexão. "A intenção aqui é que o agressor identifique os abusos e assim ocorra a mudança comportamental", disse.
Neste sentido, o trabalho desenvolvido pelo Cerav é visto como preventivo. “Há agressores físicos que são presos, principalmente os que matam. Estes não passam por aqui", explicou Tatiana. Em contrapartida, quem chega até elas é aquele homem que, muitas vezes cometeu lesão corporal e está à beira de cometer algo irreversível, principalmente no cumprimento de uma medida protetiva. "Aqui é um lugar de passagem, para evitar-se que as violências se repitam e outras coisas graves ocorram”, acrescentou. Em outras proporções e diferentemente do Cerav, o judiciário também tem como ferramentas outros suportes desenvolvidos por meio do Centro de Referência da Mulher (Cerem) e dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs), além de terapeutas no geral.
A eficácia no serviço educativo é medida pelos números. Segundo a assistente social, 94% dos atendidos respondem por violência psicológica. Atualmente, por exemplo, o Cerav atende 70 homens. Todos são obrigados a cumprir o mínimo de 15 encontros e uma avaliação. Os primeiros atendimentos são feitos individualmente, entre eles e as funcionárias, a assistente social e a psicóloga. Depois de entender o mecanismo da proposta judicial e as regras da instituição, eles são encaminhados aos grupos, que contam com 15 ou, no máximo, 20 participantes. Quando concluem os 15 encontros, que ocorrem semanalmente, é feita uma avaliação e, se estiverem aptos, são encaminhados novamente ao judiciário, que reavaliará cada situação. Segundo Tatiana, o rapaz que havia saído dali alguns minutos antes estava em seu primeiro atendimento.
“Esse rapaz que vocês viram sair daqui, por exemplo, ainda está despreparado para seguir ao grupo. Do jeito que ele está irritado com a própria situação, ele desestabilizará os demais. Precisamos fazer um trabalho antes para que ele possa prosseguir”, explicou ela. De acordo com Ingrid, a taxa de reincidência é mínima. O que lhes permite assistir cerca de 300 pacientes por ano, acumulando assim mais de 1.500 atendidos até o momento, desde que a instituição foi criada. “É um trabalho de formiguinha. Mas é encantador. Envolve muita escuta e empatia mas, por fim, percebemos que saem daqui transformados”, contou a psicóloga. Esse processo de transformação, explicaram elas, ocorre principalmente nos encontros em grupo. Onde eles aprendem a se ouvir e compartilham sentimentos e experiências.
“Eu aprendi e ainda aprendo muito aqui, com nosso trabalho. Tive que me desconstruir toda para vê-los como pessoas que merecem a chance da mudança. Empatia, por exemplo, é mais que um substantivo, é um verbo de ação, é um exercício diário", detalhou ela. Os atendidos, frisou, colocam medo em duas vítimas e machucam-nas. Ela mesmo pontou que, como mulher, precisou respirar devagar várias vezes porque "é natural me colocar no lugar dessas vítimas. Mas foi me esforçando para entende-los que consegui ajuda-los", disse. São homens que não aprenderam a falar, foram ensinados a silenciar e, assim, se negligenciar. Não sabem lidar com sentimentos básicos e isso resulta em agressividade. "Mas devagar, vamos propondo uma humanidade, permitimos o choro, e até a raiva. E aos poucos vão se conhecendo e entendendo porque dão medo por construção cultural e aceitam que não podem mais machucar ninguém, que têm que cuidar do que fazem”, detalhou Ingrid.
Não há perfil do agressor. Segundo a psicóloga, os atendidos pelo Cerav não têm identidade única. O mais novo atendido tinha 18 anos e o mais velho, 75. São homens das mais variadas origens, profissões, classes econômicas, com diferentes níveis de conhecimento, oriundos de todas as regiões da cidade. “Infelizmente o que percebemos são duas coisas importantes. A primeira é que a violência é democrática, a segunda é que está inserida em nossa cultura. Em 100% dos casos os agressores acham que estão certos porque aprenderam a pensar assim, eles enxergam a mulher como um ser menor, não como igual. Isso é cultural e independe de qualquer outro fator”, pontua a assistente. Já as violências e as vítimas têm um certo perfil, informam. A maioria delas é composta por esposas, namoradas ou companheiras, mas há número significativo de irmãs, filhas e enteadas, mães e também cunhadas, noras e madrastas.
De acordo com Tatiana, a violência entre casal gira em torno dele não aceitar o rompimento. Entre pais e filhas está relacionado a não aceitação do crescimento da filha, há opressão ou impedimento da sexualidade. Situação semelhante ocorre com os padrastos, quase sempre eles têm a Síndrome de Salvador e querem desempenhar o papel de pai com punhos de aço, trata-se quase sempre de um contexto disfuncional. Já no caso de irmãos, muitos copiam o pai e reproduzem ações abusivas com a irmã ou, ainda, ocorre dele não aceitar questões relacionadas à herança. "Com as mães quase sempre o problema está relacionado com drogas, devido filhos dependentes. Já entre madrastas, noras, sogras ou cunhadas há uma diversidade de entendimentos, mas os abusos giram em torno da não aceitação da opinião delas”, esclareceu a assistente.
Nesse total, elas contam que as reincidências quase sempre ocorrem quando o agressor e a vítima retomam a relação. É quando ele a agride novamente por conhecer as punições ou ela se aproveita do passado conjugal para alcançar algo desejado. “Veja, a participação da vítima em facilitar uma situação de abuso para alcançar o afastamento integral, por exemplo, é mínimo. Ocorre, mas é mínimo. E falar disso não desmerece em nada a importância de todo o resto que a lei Maria da Penha abarca. Mas infelizmente ocorre. O ponto positivo é que no geral, esse processo preventivo de educação é muito bem sucedido”, avaliou a assistente.
Para elas, por expertise, a educação é um caminho de mão única. Ambas destacam que as mulheres, de uma forma geral, estão tomando consciências de si mesmas e reivindicando os direitos de igualdade e paz. E isso tem provocado alterações nos homens que, por sua vez, estão tendo que repensar suas masculinidades.
“São ensinados a vida toda a engolir o choro. Mas no momento em que descobrem que o choro é livre, assim como as demonstrações de afeto, passam a mudar de postura. Recentemente vimos no grupo alguns chorar e um deles assumiu que o pai nunca o abraçou. Esse mesmo rapaz disse que de repente ele se viu abraçando o próprio filho, ainda pequeno. Ele relatou o constrangimento e desaprovação do pai ao ver a cena mas, ainda assim, a sustentou, objetivando não querer que o filho cresça sem afeto. Confrontar-se e rever as próprias atitudes, quando aprende-se, é um caminho sem volta, um ato de coragem que vale ser alimentado”, finalizou Tatiana (LL).
**Carlos Rodriguez, conhecido como Radríguez, é um ilustrador mexicano e o desenho desta reportagem está na série masculinidades.
*Este é o 10º texto da SÉRIE FEMINISMO
- 1ª matéria: No olho do furacão! (Por Nicole Bonentti);
- 2ª matéria: A criminosa violência psicológica! (Por Leila Gapy);
- 3ª matéria: Amiga: fica esperta! (Por Leila Gapy);
- 4ª matéria: Invisível, mas nem tanto! (Por Pâmela Ramos);
- 5ª matéria: Uma resposta chamada Feminismo! (Por Isabela Dantas);
- 6ª matéria: Elas por todas nós! (Por Isabel Rosado);
- 7º Texto (1º artigo): Às negras: a história por direito! (Por Maria Teresa Ferreira);
- 8º Texto (7ª matéria): Ei, cara: tem lugar para você! (Por Alexandre Meiken);
- 9º Texto (8ª matéria): New men or nothing! (Por Eduardo Lira).
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Leila Gapy

é jornalista por formação, encantadora de memórias por vocação e professora, sua nova paixão. Idealizadora deste blogue, é especialista em Jornalismo Literário e mestre em Comunicação e Cultura. Pesquisa texto artístico seriado e ama ler histórias reais. Tem 38 anos, é casada e tem uma filha, Catarina, sua inspiração. Foto: San Paiva | Fotopoesia
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