A MULHER do pai!
- Lilis | Linhas Livres
- 5 de mai. de 2018
- 16 min de leitura
Atualizado: 19 de set. de 2018
Por Natalia Gómez Targa*
Foto Ilustração, Divulgação e Arquivo Pessoal
Durante séculos elas foram culturalmente malfaladas e malvistas, mas as madrastas contemporâneas, que antes não exerciam papéis definidos, parecem agora escrever novas histórias. E, desta vez, com aulas de resiliência!

Da janela de casa, Sabrina espia. Ela tem 27 anos e seus olhos castanhos claros, em um rosto de menina, vigiam a reunião que acontece lá fora, no portão. É Dia das Mães. Seu marido, suas duas enteadas adolescentes, e a mãe das meninas discutem sobre uma delas. A conversa leva tempo, 5, 15, 30 minutos. Mas nem precisaria demorar tanto para Sabrina perceber que a conversa vai bem - e talvez deva mesmo ir bem - sem sua presença. Seu lugar, escondida na janela, dói. Não importam seus erros e acertos com aquela família.
Naquele momento e em tantos outros no passado e no futuro, ela não pertence. “Foi ali que eu percebi: esta família não é minha. Aquela família nunca foi minha." De esposa, mulher do pai, ou madrasta, como ela gosta de falar com seu sotaque carioca, Sabrina foi parar naquele canto escondido na janela. Sua angústia a leva a atuar diferentes papéis - a mulher, a intrusa, a indiferente, a corajosa. É a batalha de quem não tem um lugar definido, que oscila dentro e fora da família, avança e recua, ora em areia movediça, outras vezes na corda bamba. Sabrina é contorcionista. Sabrina é madrasta.
Difícil imaginar a sua vida quatro anos atrás, quando ainda vivia no Rio do Janeiro, com seus pais e sua irmã. Com um cotidiano confortável, não precisava se preocupar em encher o tanque do carro ou cuidar da casa – este era papel dos seus pais. Um dos seus passatempos preferidos era participar de jogos de guerra pela internet. E foi assim que ela conheceu, virtualmente, o seu marido André, onze anos mais velho. Em pouco tempo, as conversas saíram do plano virtual e se tornaram mais constantes. Quando enfim ela foi a São Paulo para conhecê-lo, se apaixonaram.
Um estranho sentimento de que já conhecia aquele homem tomou conta de Sabrina. “Tive uma sensação muito forte de que já tínhamos uma relação, era como se ele tivesse sido meu irmão em uma vida passada.” Nesta vida, o sentimento fraterno foi substituído por uma grande paixão pelo homem mais bonito com quem ela já esteve. Paixão suficiente para Sabrina mudar sua rotina completamente, deixar seus pais no Rio e abraçar uma família que não é formada apenas por André, mas por duas filhas adolescentes e por uma ex-mulher inconformada com a separação.
Sabrina sabia que, quando conversava com ele pela internet, André ainda vivia sob o mesmo teto da ex-mulher. Ainda não tinham chegado a um acordo sobre quem ficaria com a casa que ele havia construído, pouco a pouco, ao longo de vários anos de trabalho como técnico de eletrodomésticos. Ela sabia também que a ex-mulher ainda queria conquistá-lo. Sabia que ali viviam as duas filhas que sofriam com o relacionamento conturbado dos pais, mas sempre torceriam para que os dois continuassem juntos. Mesmo sabendo de tudo isso, Sabrina não podia imaginar o que seria respirar aquela família.
Passados três anos de convivência, entre entendimentos e brigas, carinho e desamor, ela questiona a sua decisão a cada tropeço. São tantos conflitos que às vezes não dá tempo de se recuperar de um antes que venha outro. “Eu imaginava, mas não sabia o que seria conviver, criar e educar o filho de outra pessoa.” O conflito desta madrasta brota de várias nascentes: a interferência da ex-mulher na sua vida, o fato de uma das meninas não a aceitar dentro da família, e a opção que a caçula fez de morar com o pai e a madrasta. Na vida desta jovem que vive seu primeiro casamento, não há muito espaço para ficar a sós em casa com o marido.
Todos os dias antes de a menina voltar da escola, uma pontinha de angústia brota em Sabrina, pois ali acabam sua privacidade e exclusividade. São raras as viagens sem a companhia da enteada. É tanta a energia investida na educação da menina de 13 anos, que Sabrina parece ser mais velha do que realmente é. Sua aparência de feições delicadas e batom cor-de-rosa não delatam seu amadurecimento. Ela tem cabelos claros, compridos, e se veste como uma jovem. É a conversa que denuncia sua alma marcada pelas angústias diárias, que conta em mínimos detalhes, ora com expressão de mágoa, ora com raiva, e depois com doçura.
“Eu sinto que vivo uma avalanche de sentimentos. Lembranças ruins, culpa, tristeza, responsabilidade por ser a pessoa mais velha na relação com as meninas.” Tem horas em que ela sente vontade de sair correndo. Estuda como seria largar tudo e voltar para o Rio. Pesa na balança suas conquistas na nova cidade, como psicóloga e mulher. Não chega a um acordo consigo mesma, e vai ficando. Sua válvula de escape é um fórum de madrastas na internet, onde narra suas histórias sem pudores – mas o faz sob um pseudônimo, assim como nesta reportagem.
Pudera este “ir ficando” ser um pouco mais fácil. Mas Sabrina ainda não se rendeu. Para ela, o lugar da madrasta na família é um lugar central, como mediadora de conflitos quando os pais dos enteados já não se entendem mais. Como pessoa mais distante deste núcleo, ela acredita que pode ajudar. E arca com as conseqüências que esta posição central traz para si. Dona de uma energia admirável, ela não se esquiva do papel de cuidadora. Com ou sem satisfação, Sabrina conquistou autoridade na família.
Na prática, isso significa argumentar com a mãe para evitar que a menina falte na escola; ficar entre o pai e as filhas quando as discussões ficam acaloradas demais; receber mais críticas do que agradecimento por tanta participação. Quando se chateia, fala que vai “lavar as mãos” nos cuidados da enteada que mora com ela, mas depois recua e se vê às voltas com os mesmos assuntos – higiene, comportamento, educação. “Tenho um sentimento parecido com o que tenho pela minha irmã, um instinto de proteção.” Sua dificuldade não está apenas em cuidar, ou em se importar com uma filha que não é sua. O desafio é lidar com a frustração de não ter uma recompensa emocional ou simbólica por seus esforços. O
maior amor, mesmo que conturbado, é reservado à mãe.
Indefinição

A foto publicada no Orkut (antiga rede de relacionamentos) pela menina, com a mãe, a irmã e a avó materna, com a legenda “como era boa esta época”, foi suficiente para derrubar o mundo de Sabrina por vários dias. Mesmo com tantos cuidados pela garota, ela não pode esperar amor ou aplausos. Na prática, é difícil – a rejeição machuca. “Para que sirvo então?”, pergunta em seus desabafos. A frustração de Sabrina é bem explicada pela autora do livro “A Mulher do Pai”, Fernanda Carlos Borges, da editora Summus.
Em uma família nuclear, o peso das obrigações entre os indivíduos existe, mas em compensação todos sabem que fazem parte da família. A madrasta, por sua vez, sente o peso das obrigações por todos, mas simbolicamente “não faz parte da família”. São laços que a prendem mas não oferecem satisfação, em especial uma satisfação simbólica. “Um sacrifício feito pelos pais vale a pena em nome de um bem maior, mas qual é o bem maior destinado à mulher do pai nas relações com os filhos do marido?”, questiona a autora do livro.
Aí mora a pergunta silenciosa que circula nas mentes das madrastas e pouco é notada pelos demais membros da família. Para André, um gesto de ingratidão da filha é visto como natural, pois ela é uma adolescente. Para Sabrina, o peso é outro, pois os laços de sangue e amor incondicional não estão ali para amortecer a queda. Além dos cuidados diários com a caçula, Sabrina tem outra enteada, de 15 anos, que vive com a mãe e não aceita a separação dos pais nem a sua presença dentro da família. Para ela, apoiar Sabrina é afrontar a mãe. Com esta enteada, as brigas são muito mais feias – e desgastantes.
A tal ponto chegou o conflito com a ex-mulher e a primogênita que Sabrina foi agredida fisicamente por elas, na frente de casa, no meio da rua. O ciúme e a raiva se traduziram em socos, um deles no rosto de Sabrina. Indignada e decidida, ela prestou queixa na polícia. Meses depois, decidiu retirar, em nome da relação com as enteadas. O sintoma foi resolvido, mas a ferida está aberta. Ela não gosta de falar sobre isso, e quando detalha a cena, se emociona e chora. Depois de muitos reveses, a relação com a ex-mulher hoje é civilizada, mas Sabrina ainda se sente ameaçada pela mãe das filhas do marido.
Tanto que prefere levar pessoalmente a enteada até a casa da mãe, para evitar que ele circule por ali. Além dos "inimigos" concretos, um grande drama de Sabrina é lidar com os fantasmas da relação anterior. Por muito tempo no início da relação, sentia que vivia a sombra do relacionamento passado. “Ele escolheu outra mulher para ser mãe dos filhos dele. Não me esperou.” Esta sensação a impede de ter seus próprios filhos com André, com medo de que seu filho não seja tão especial para o marido. Tampouco tem coragem de se casar com ele no papel. Prefere ter um pé na liberdade, caso tudo desmorone de vez. Enquanto isso, procura acertar a mão no confuso papel de madrasta.
Os papéis
Pai e mãe ocupam, independente da sua marca pessoal, um lugar muito claro na família. Protegidos pelos seus papéis, contam com milenares exemplos para criar sua identidade. Podem guiar-se até pelo cheiro da sua cria, buscar inspiração para duras tarefas na semelhança que encontram entre seus rostos e de seus filhos. Nove meses de gravidez estão ao lado de pai e mãe, e mesmo se o filho não for biológico, os pais contam com o trunfo de terem optado ativamente por tomar aquele filho como seu.
Os papéis podem ser cumpridos melhor ou pior dentro de cada família, mas sua existência mais fundamental, familiar e social, é garantida por símbolos inquestionáveis. Afinal, por mais óbvia que seja esta conclusão, a mãe é só uma. E será a mãe para sempre - idem para o pai. Mas o que dizer da figura que ganha espaço na família contemporânea, que silenciosamente entra em cena, de forma numerosa, mas não sem aviso?

Ela não tem papel definido, ela tampouco tem nome. Madrasta, esta palavra carregada da simbologia da bruxa dos contos de fada, é perigosa. Serve para designar aquela que substitui a mãe, o que não se aplica na maioria dos casos, em que a madrasta entra na família após um divórcio. Ela não entra por substituição, mas por adição. Os filhos têm sim, mãe. Ela pode então ser chamada de mulher do pai. As crianças podem chamá-la de tia, pelo seu nome, mas de partida sua posição é mais nebulosa do que outros parentes, pois nem mesmo se sabe se a madrasta é, de fato, parente.
A mãe e a madrasta
A mãe geralmente é vista, no senso comum e na literatura, como ideal de amor e afeição. Por outro lado, Cinderela e Branca de Neve nos ensinam, há muito tempo, que as madrastas são egoístas, frias e cruéis. Os mitos relacionados ao assunto foram estudados pelas psicólogas Denise Falcke e Adriana Wagner, da PUC-RS, no trabalho “Mães e madrastas: mitos sociais e autoconceito”, com a participação de 50 mães e 50 madrastas de Porto Alegre.
O estudo aponta que os dois modelos de identificação das madrastas são baseados em dois opostos: a figura idealizada da mãe perfeita e as madrastas malvadas descritas na literatura infantil. “Não é raro que elas sejam induzidas a tentar, de todas as formas, ‘substituir’ a mãe biológica a fim de que possam suprir as carências dos enteados.” Contudo, na impossibilidade de executarem a tarefa, são freqüentes as frustrações. Tanto ela como o enteado se vêem diante da insegurança de um relacionamento cheio de riscos, de rejeição e incertezas.
Outro mito apontado pelo estudo é o de que a madrasta terá um “amor instantâneo” pelos enteados. Quando estas expectativas irrealistas não se cumprem, a madrasta sente-se culpada e inadequada, temendo que venha a se tornar aquela personagem cruel da literatura infantil. Na realidade, na maioria das vezes, ser padrasto ou madrasta não é o mesmo que ser pai ou mãe. No entanto, esta ideia não parece estar de acordo com as expectativas sociais sobre a experiência de ser madrasta ou padrasto.
Aos olhos da sociedade, a madrasta tem obrigações com os enteados, em especial quando ainda são crianças ou adolescentes. É esperado que ela cuide deles, zele pela alimentação, pela saúde e pela educação quando estão em suas casas. Mas os limites colocados pela família também são claros, o que deixa a situação contraditória: ao perder a paciência, será prontamente lembrada de que não é a mãe. Ao mesmo tempo em que deve ser uma boa substituta da mãe na sua ausência, deve saber recolher-se.
Na lei
Legalmente, madrastas e enteados não são parentes. Na visão da Justiça, o vínculo entre eles só existe enquanto o pai for vivo e casado com sua nova mulher. Mesmo que a criança viva com eles, não é a madrasta que ficará com ela em caso de morte do pai, salvo raríssimos casos. A mãe é a primeira na fila, seguida por avós, tios e irmãos, de acordo com quem tiver melhores condições para cuidar da criança. A madrasta tampouco será lembrada quando houver necessidade de pagar uma pensão para a criança.
Segundo o advogado especialista em direito de família, sócio da PLKC Advogados e membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família, Luiz Kignel, a guarda das crianças só fica com a madrasta quando se configurar uma relação chamada “sócio afetiva”, quando a mãe é falecida e a madrasta a cria desde cedo, como se fosse seu próprio filho. Sinal de que esta relação só ganha vida própria no mundo legal quando abandonar sua real natureza – madrasta e enteado – e se transformar, dentro do possível, em uma relação mãe e filho.
E o coração?
Apesar de contar com conceitos objetivos no mundo legal, a madrasta caminha sobre campos minados no campo emocional, procurando sozinha descobrir qual é o seu lugar. Diferente de muitas, Sabrina optou por um lugar central na família e para isso teve que brigar bastante - e ainda briga. Mas esta não é a única opção para estes personagens que têm mais perguntas do que respostas.
A estudante de direito Elaine, de 37 anos, procura sua tranquilidade em uma posição muito mais distante dos conflitos. Mãe de um jovem de 20 anos, fruto de um casamento conturbado, teve uma vida dura, de muito trabalho e pouco paparico. Seu ex-marido, pai de seu filho, bebia. Foram anos se escondendo dele depois da separação. Quando enfim conheceu seu atual marido, Alberto, descobriu o quanto um marido pode ser carinhoso.
“Ele estraga muito as crianças, mas não posso reclamar porque ele me mima também.” Pela primeira vez está desempregada e aproveita para realizar o sonho de estudar Direito. Alberto deixa até o dinheirinho para o pão antes de sair de casa. “Para mim, a família somos eu e ele. As crianças já estão grandes. Me preocupo mesmo é com meu marido.” Português, Alberto é um pai presente para seus três filhos. O mais velho e a caçula Júlia vivem com a mãe em Nova Friburgo (RJ). O filho do meio vive com o casal, assim como o filho de Elaine, e são amigos.
Vivendo com um filho de cada um, encontram um equilíbrio no dia-a-dia da casa, em Sapopemba, na Zona Leste de São Paulo. Pele morena e cabelos tingidos de loiro, com uma fala mansa e objetiva, Elaine conta que procura tratar os enteados da mesma maneira com que trata o filho. “Não sei se é porque eu gosto de Direito, mas eu procuro sempre ser justa.” Mas esta conta nem sempre é fácil de fechar quando sua enteada Júlia está presente. Caçula, com nove anos, a franzina garota de 19 quilos é a menina dos olhos do pai.
Quando Júlia passa as férias com o pai, Elaine só fica em casa se o marido estiver presente. Prefere sair para passear de manhã, enquanto o irmão faz companhia para a menina. Sofre com a falta de autoridade que tem sobre a enteada, que só poderia ser garantida com o respaldo do pai. Reclama dos gritos, das respostas atravessadas e da desobediência, especialmente quando o assunto é comida. “Eu não levo desaforo de criança, eu não aceitava isso nem do meu filho.”
Mas o marido coloca panos quentes e diz “deixa ela, deixa ela”, imita Elaine, antes de calar-se por alguns segundos com uma expressão cansada. Única menina do grupo, Júlia se incomoda com os carinhos entre seu pai e a madrasta. A cama do casal é um campo de batalhas, pois a criança sempre quer dormir com o pai. Mais de uma vez, Elaine chegou em casa para deparar-se com a menina no seu lugar na cama. Nestes momentos, a questão de “qual é o lugar da madrasta”, ganha contornos muito concretos.
Ela ensaia uma conversa que terá com o marido sobre o assunto. Diz que vai pedir que ele se ponha no lugar dela, que imagine como seria se um sobrinho gritasse com ele. Mas ela não sabe quando vai ter esta conversa. O tema é delicado, e a menina vai embora depois de 15 dias. “Eu penso que são só alguns dias”. Então, sai para fugir do conflito. Para ela, fica difícil existir na sua própria casa.
A cada dia, as famílias recasadas, também chamadas de famílias mosaico, são mais comuns no Brasil. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a proporção de recasamentos no qual pelo menos um dos cônjuges é divorciado ou viúvo passou de 10,6% em 1999 para 17,6% em 2009 entre o total de casamentos. Somente em 2009, foram concedidos 136.784 divórcios em primeira instância, dos quais apenas 30% dos casais não tinham filhos.
O divórcio caminha para ser uma das palavras mais faladas desde os anos 60, empunhada por gerações como a grande conquista, mais um bastião da liberdade, primo da pílula anticoncepcional e do rock and roll. Divorciam-se as pessoas. E a frase termina seca com um ponto final. Os bens de cada um são separados, as fotos, os móveis, as lembranças. Não dava mais; não havia salvação; traições; incompreensões e tantos argumentos irrefutáveis - pois basta ser casado para saber como é complexa a arte do casamento. Não se ensina na escola, não se ensina em casa. Cada casal tenta descobrir sozinho. Quando não descobrem, divorciam-se. E ponto final? Melhor reticências...
No meio de portas retratos, tralhas e dinheiro, como se dividem os filhos? Aquelas pessoas que não escolheram, mas são metade de um e de outro, independente do que ocorra com os pais. As crianças ou adolescentes não se dividem, é claro: sofrem. Não entendem, se culpam, culpam os pais. Se o pai namorar ou ca sar de novo, existe boa chance de que culpem a madrasta, ainda mais nos casos em que esta influenciou o divórcio. Não importa se o casamento já havia acabado, a tendência é culpar o estrangeiro, pois ele é a prova de que as coisas mudaram.
A possibilidade da paz
A longa experiência de dona Alice dos Santos Pompeu, 74 anos, como madrasta, faz as coisas parecerem um pouco mais simples. Ela foi casada por “47 anos e dez dias” com Nelson, viúvo e pai de três filhos. Alice tinha apenas 27 anos quando se casou e herdou os enteados Nelson, então com 14 anos, Otília, com 10, e a caçula Susan, com cinco anos de idade. Com expressão serena, cabelos grisalhos e pequenos olhos azuis, Alice conta que largou seu emprego em um laboratório para ficar em casa com as crianças. “As amigas diziam: você é louca, vai assumir isso tudo? Vou, eu respondia”, diz dando uma risada gostosa. Conta que o marido era apaixonado pela esposa anterior, e que era “bonita, bem alta”.
Em sua confortável casa no bairro da Vila Mariana, na capital paulista, Alice mostra as fotografias do passado. As imagens pequenas e gastas mostram uma mulher magra, de baixa estatura, com óculos de gatinho, uma bonita saia branca, ao lado de um homem alto de terno. Foi um dos primeiros encontros do casal, em um jardim próximo de onde fica atualmente o metrô Ana Rosa. Nelson havia conhecido outras mulheres, mas nenhuma havia sido aprovada pelas crianças. “A Otília dizia: se ele se casar com esta, eu pego a Susan e vou embora. Mas quando me conheceram, disseram que comigo ele podia casar.”
A primeira decisão da jovem madrasta foi manter a casa exatamente como era antes da morte da mãe. “Não joguei nenhum alfinete fora.” Depois, colocou um porta-retrato com a fotografia da mãe na cabeceira de cada criança. Pouco tempo depois nascia o seu único filho, Carlos. Além de cuidar das quatro crianças, Alice trouxe para sua casa a mãe doente, que viveu com eles durante 24 anos. O sogro veio depois, e viveu cinco anos com a família.
Alice conta que não foi difícil assumir o papel de cuidadora. “Família é união, você pega um fio de cá e outro de lá e vai emendando.” Acredita que cada um vem para o mundo com um destino escrito, e que este era o seu. As lembranças que vêm à tona mostram o casal sempre acompanhado das quatro crianças, nas viagens que faziam de carro para Ceará, Pernambuco, Chile e Argentina. Nos finais de semana, iam para os quiosques que existiam na rodovia Raposo Tavares. Alice levava até um fogão portátil para preparar a comida.
Não sabe contar nenhum conflito que tenha tido com os enteados, apenas sentencia: “Não é fácil. Se falar de tudo que não gosta, acaba brigando por qualquer coisa. Se tentar fazer do seu jeito, não vai conseguir.” O grande segredo no cuidado com as crianças é o carinho. “Tem que passar a mão na cabeça da criança”, ela repete, fazendo tudo parecer simples.
Seu marido Nelson, falecido há seis meses, era militar, e lutou na Itália em 1945. Rígido na criação dos filhos, só com um olhar conseguia a obediência das crianças. Não gostava que os meninos andassem descalços, mas era só virar a esquina que todos tiravam os sapatos. “Até hoje eles dão risada com esta história.” Agora, Nelson descansa ao lado da primeira esposa, onde foi enterrado a seu pedido.
Apesar de não conviver com a antiga esposa, como acontece com muitas madrastas, Alice conviveu com sua memória. Conta que foi bem recebida por seu espírito. “Um dia, quando ia para Piracicaba com o marido, os enteados, com o filho no colo, senti que alguém fazia carinho na minha cabeça. Quando cheguei em Piracicaba, meu cunhado, que é espírita, disse que a gente tinha ido acompanhado. E disse que ela estava feliz da vida.” Uma outra noite, conta ter visto o vulto da mãe que visitava seus filhos no quarto em que dormiam. Pai e mãe se foram, e Alice continua. Tem nove netos e quatro bisnetos. Mesmo os que não têm laços de sangue a chamam de avó. Mas os enteados não tiveram esta autorização. “Nunca deixei me chamarem de mãe. Mãe é uma só e insubstituível.”
Nas estatísticas do IBGE, madrastas e enteados são personagens tão reais quanto pais e filhos. Na intimidade das famílias e no senso comum, não há muito de natural nestas relações. Há estranhamentos. Estereótipos. E uma grande dificuldade em aceitar o fato de que estas relações não são dadas, mas precisam ser construídas.
Neste trabalho, não apenas madrastas e enteados são forçados a sair da sua zona de conforto, mas pai, ex-mulher e até cunhados e avós se veem diante de novas situações. Afinal, é preciso incluir as madrastas, simplesmente pelo fato de que elas existem. É um longo caminho a ser percorrido até que as partes do mosaico sejam coladas novamente, dando origem a novas formas, tão reais e possíveis quanto aquela que se quebrou.

*Natalia Gómez Targa escreveu este texto 2011 como parte dos trabalhos da pós-graduação em Jornalismo Literário pela, então, Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL), atual Instituto Edvaldo Pereira Lima (EPL). Os dados não foram atualizados, mas iniciativa de publicá-lo agora, pela primeira vez, visa unicamente ampliar o debate em torno da concepção da família contemporânea, propondo um necessário olhar respeitoso ao papel da madrasta, ainda pouco explorado no jornalismo. Na época em que escreveu, Natalia já era casada com Felipe e madrasta da pequena Tiffany, atualmente com 11 anos; mas há pouco mais de três anos a família cresceu - ela agora também é mãe -, chegaram Júlio e Benício, este último com apenas oito meses de idade. A família reside feliz no Paraná.
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Natalia Gómez Targa
É uma escritora que nasceu gostando das palavras e exerceu essa paixão de diferentes formas. Foi jornalista de economia por 14 anos, se especializou em jornalismo literário, teve vários blogues e hoje produz conteúdo para produtos digitais. Livre de rótulos, escreve aqui por puro prazer de escrever e pela alegria de deixar brilhar, pelas palavras, a sua luz interior. Paulistana, tem 34 anos e vive em Maringá (PR) com a sua família desde 2015. (Leia mais aqui!) Foto de Michele Moraes.
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