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A PALAVRA SAUDADE não existe em inglês!

  • Foto do escritor: Lilis | Linhas Livres
    Lilis | Linhas Livres
  • 26 de abr. de 2018
  • 6 min de leitura

Atualizado: 19 de set. de 2018


Por Maíra Alves

Fotos Daily Star, Divulgação e Arquivo Pessoal

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Big Ben (Palácio de Westminster), Londres (UK)

Nunca havia vivido um verão no mês de julho. Muito menos um verão onde as temperaturas muito raramente passavam de 30°C. Ou ainda, um verão em uma praia onde a água era tão gelada que quase ninguém se aventurava a mergulhar. Onde o vento batia forte no rosto enquanto a noite caía. Ou onde o sol quase nunca dava as caras.


Eu tinha 13 anos. Uma criaturinha cheia de inseguranças que do mundo quase nada conhecia. Sempre fui do tipo que ama estudar. Já cheguei a dizer para minha terapeuta que não sabia se era porque passei muito tempo sozinha ou se era porque de fato gostava. Estudava inglês desde os oito anos.


Havia começado junto com as aulas de violino, que tive até os 15. E, mesmo sabendo as diferenças entre present perfect e past perfect, na prática é sempre diferente. É que eu sempre fui muito tímida. Falar em público sempre me causou desconforto. E para obter uma boa pronúncia era necessário falar.


Mais do que isso, era preciso me comunicar, ouvir e ser ouvida, entender e ser entendida. E para alguém cujos problemas de dicção assombram até hoje, já deu para perceber que não foi nada fácil. Eu nunca havia viajado sozinha. Aliás, para uma menina de 13 anos, prestes a ingressar no Ensino Médio, havia feito pouquíssimas coisas sozinha na vida.

A decisão de me mandar de mala e cuia para um país do outro lado do oceano, onde ninguém falava minha língua, foi tomada de forma tão natural que, analisando agora, chega a ser um tanto imprudente. Minha professora de inglês, uma senhorinha japonesa com metade da minha altura, cuja casa servia como escola, havia falado em uma das aulas sobre intercâmbios de férias.


Eu não podia fazer o famoso high school por conta da minha idade, nem mesmo poderia quando chegasse ao Ensino Médio, visto que minha futura escola fazia questão de repetir os alunos que passavam um ano fora. Contei para meu pai sobre a proposta da professora.


Disse para ele que havia um programa que incluía uma breve passada na França antes dos estudos se iniciarem na Inglaterra. Que eu poderia experienciar viver na casa de uma pessoa local, que eu aprimoraria o inglês e que isso, com certeza, adiantaria a conclusão do curso. Ele foi falar com a professora.


E voltou já com planos de procurar o melhor lugar para fechar a viagem. Eu, como boa acumuladora, tenho todos os papéis guardados até hoje. Sei bem do esforço financeiro que ele fez para pagar todas as despesas. Despesas em Libras Esterlinas! Avaliem!!!


No dia 4 de julho, lá estava eu no enorme aeroporto de Guarulhos (SP), com uma mala que não chegava nem na metade do peso permitido, vestindo uma camiseta verde neon ­— que eu não usava sozinha ­—, e completamente tomada pela ansiedade. Não chorei ao me despedir de meus pais. Estava empolgada demais, confesso.

Dezessete horas depois, já no dia seguinte eu aterrissei na Cidade Luz. Ah, Paris... Toda charmosa, com sua paleta de cores em bege e verde. Quase não fui capaz de aproveitá-la no primeiro dia. Choraminguei pelos cantos o dia todo por não ter conseguido falar com meus pais.


A ansiedade passara e a insegurança e a saudade de casa me tomaram por completo. Chorei de soluçar quando consegui ligar para meu pai. E ele me deu uma bronca por isso. Passado o drama, todo o resto foi como num sonho. Enxerguei Paris por seus melhores ângulos.


Do alto da torre, do alto da escadaria da Sacre Coeur, de dia e de noite, com suas luzes amarelas que deixam tudo mais bonito. Até mesmo os fast foods são mais charmosos na França, com seus potes enormes de macarons coloridos por todo lado. Caminhei pelas ruas, tomei chuva, passei horas admirando os vitrais da Catedral de Notre Dame.


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Interior da Catedral de Notre-Dame, Paris (FR)

Fiquei com o pescoço doendo por olhar tempo demais para os lindos lustres do Palácio de Versailles, e passei muito tempo correndo das pombas. Passeei pelo Rio Sena em um elegante barquinho turístico. Encontrei a Gioconda, ou Mona Lisa, para os íntimos. E me decepcionei com seu tamanho.


Nem com o dia todo vi tudo que o Museu do Louvre podia oferecer. Sequer encontrei o Santo Graal. Fiz a coisa menos parisiense do mundo, que foi passar o dia inteiro dentro da EuroDisney e, no final daquela tarde, embarquei em uma balsa — que mais parecia um transatlântico —, rumo a Dover, Inglaterra.


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O mar de Bournemoth, Dorset (UK)

E foi na Inglaterra, numa cidadezinha de nome difícil de pronunciar — B-O-U-R-N-E-M-O-U-T-H — que vivi aquilo que me mudou para sempre. Parece fútil dizer que uma viagem de intercâmbio te muda para sempre. Pelo menos é o que eu sempre penso quando eu falo isso para alguém.


Mas eu era uma pessoa quando fui. E era outra completamente diferente quando voltei. Foi só quando eu tive que lidar com outros costumes, me virar para dizer o que eu sentia ou precisava, administrar meu dinheiro e, principalmente, andar sozinha, que eu aprendi a ser eu mesma. Eu, Maíra, indivíduo independente.


Foi quando eu aprendi o que eu gostava de fazer, comer, vestir, escutar. Sem interferências, sem induções, eu aprendi a me ouvir. Aprendi como eu funcionava e, daí para frente, foi fácil me encontrar como pessoa. Aprendi muito. Muito mesmo. Aprendi inglês — e ganhei um sotaque que não sai mais de mim ­—, aprendi a andar sozinha, a pedir algo em um restaurante, a usar cartão de banco, mas principalmente, aprendi a apreciar as pequenas coisas.

E que a felicidade se conquista de dentro para fora. Que não há nada mais feliz que uma xícara de chá quentinha, Digestives cobertos de chocolate, pijama e meias felpudas na frente da lareira. Que “Marley & Eu” sempre vai me fazer chorar, não importa quantas vezes eu assista. E que alguém estranho e que parece meio frio a princípio pode virar sua mãe. E te mimar muito.

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Morro de saudades da minha mãe irlandesa. Mary tinha 72 anos na época. Era viúva e tinha como companhia constante um gatinho preto manchado de branco, de nome Smudge. Acolheu-me em sua casa, me contou as mais diversas histórias e me preparou incontáveis xícaras de chá. (Na foto ao lado, a cozinha de Mary)


Preparava até meus almoços, para quando eu ia passear nos fins de semana com meu grupo. Era sempre um sanduíche, uma fruta, um pacote de crisps, uma caixinha de suco de maçã e um chocolate. Nenhuma outra host mom parecia se preocupar tanto quanto ela. Tenho uma foto nossa em um porta-retrato. Tirei em nossa despedida.


Chorei compulsivamente ao vê-la ir, pois sabia que eu não a veria mais. Nunca vou me esquecer de sua comida quentinha no início da noite, de nossas conversas, de sua cozinha repleta de coisas vermelhas, minha cor favorita, ou da sua superstição com guarda-chuvas. Mas, com certeza, jamais esquecerei do seu cuidado e carinho por mim.

Voltei com uma malinha de mão a mais. E fui recebida com abraços e beijos por minha família. Desde então, nenhum julho foi como aquele. Acho que uma parte de mim ficou naquela cidade chuvosa, esperando que eu volte para buscá-la. E eu pretendo voltar. Passar pela Paisley Road, pela minha casa, mesmo sabendo que Mary não estará lá para me receber. Passar por minha escola, pela praia. Sentir o ar frio do mar atravessar minhas roupas...


Toda vez que chove faço questão de ficar em silêncio. Fecho bem os olhos, abraço minhas pernas e, se eu me concentro bastante, volto ao sofá bege e à sala de papel de parede florido. E é como se eu pudesse sentir o calor do gatinho ao meu lado, o cheiro de chá e a risada melodiosa de Mary ecoando em meu peito. Acontece que a palavra saudade não existe em inglês.


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Maíra Alves


Belenense de nascença e sorocabana de coração, Maíra carrega a poesia no nome. Transforma coisas boas em palavras, coisas ruins em versos e escreve o que a fala não é capaz de expressar. Com 20 anos, é estudante de Psicologia e tem como motivação para seus textos as alegrias e desafios da vida. (Leia mais aqui!) Foto San Paiva | Fotopoesia

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