CUNHA e a idade do infinito!
- Lilis | Linhas Livres
- 22 de mar. de 2018
- 9 min de leitura
Atualizado: 19 de set. de 2018
Por Raquel Teixeira
Fotos site Por Onde Andamos (1,3 e 4) e Arivane Tezoli (2)

Minha primeira ida até Cunha (SP), a pouco mais de 450 quilômetros de Sorocaba (SP) – onde resido -, foi com meus oito anos, ou, como prefiro dizer, na idade infinita, já que o número oito é igual ao símbolo do infinito, só que de pé. E fora isso, a impressão que tenho é que há uma certa intensificação dos sentimentos e momentos vivido quando se tem oito anos.
Percebi isso dias atrás quando conversava com meu irmão Gabriel que, para variar, estava mais interessado em olhar o celular do que em lembrar. As minhas recordações dos momentos vividos em Cunha são cheias de cores e sensações, como um filme de James Cameron, cineasta canadense. Já as de meu irmão, “foi só uma ida ao lago da cidade, não foi tão emocionante assim, Raquel”. Tudo bem, eu entendo o lado dele, já havia passado da idade infinita, estava com doze anos na época.
Mas lembro-me que chegar até Cunha foi difícil. A Vila de Nossa Senhora da Conceição de Cunha, que com o passar do tempo se tornou simplesmente Cunha, é cercada pelas montanhas das Serras do Mar, da Bocaína e do Quebra-Cangalha.
Esta última batizada por aqueles que faziam o acidentado caminho da Estrada Real e sofriam com a descida íngreme das encostas que arrebentava a armação que sustentava a carga das bestas, a cangalha. A estrada serpenteia por um longo trecho a serra que a rodeia, o suficiente para me deixar enjoada. E como se não bastasse, o carro quebrou, deixando todos os passageiros - minha avó, minha mãe, meu tio, meu irmão e eu -, a esperar o guincho no acostamento.
Ficamos ali, com as malas para fora do carro, esbaforidos no asfalto quente, como quem pede carona à beira da estrada. E o guincho? Demorou tanto que cheguei a imaginar se ele também não havia sofrido algum acidente. Depois de todo esse contratempo chegamos em Cunha. A cidade, no estado de São Paulo, era a última parada antes do porto de Paraty (RJ) para aqueles que faziam o caminho levando o ouro de Minas Gerais até Portugal, na época do Brasil Colônia.
Os que ali paravam buscavam descanso, reabastecimento das provisões necessárias para seguir viagem. Dessa tradição acolhedora sobrou uma vocação para o turismo. No nosso caso, fomos direto para a casa de meus tios avós, Ariadne e José Carlos, que nos receberam fazendo jus à tradição da cidade de bem acolher os viajantes. A casa fica num bairro chamado Vila Rica, cujo nome anuncia, é repleta de casas grandes e ruas arborizadas.

Tem um jardim delicado e com árvores floridas, sendo minha preferida o pé-de-lichia. Eu e meu irmão nos divertimos muito ali. As amélias atraiam os beija-flores e nós alimentávamos as outras aves com farelo de milho. Minha tia Ariadne nos levava ao fundo da casa para nos ensinar seus truques de adubagem e que, por sinal, me foi muito útil em uma prova de biologia, tirei nota dez. Se minha tia se dedica à jardinagem, meu tio se dedica à cerâmica. Nos anos 1970, um grupo de ceramistas que seguia até Paraty fez uma parada forçada em Cunha, o carro havia quebrado.
Acabaram ficando por lá, gostaram do clima, das montanhas e da argila, matéria-prima essencial para a cerâmica. Meu tio foi para lá muito tempo depois, mas também ficou pelos mesmos motivos e lá trabalha em seu ateliê. Com seu trabalho impecável, realizava diversas cerimônias, utilizando as mais variadas técnicas. Todos nós apreciávamos.
Eles deixaram São Paulo, capital, onde levavam uma vida estressante, sempre tensa, afetada pela brutalidade da cidade grande. Ao se mudarem para aquele ambiente calmo e pacato, aos poucos aprenderam a desfrutar dos pequenos prazeres da vida, como apreciar o sol se pondo por trás das montanhas todo final de tarde, na companhia de uma xícara de chá, na varanda.
Passei momentos agradáveis e divertidos naquela casa. Adorava colocar em práticas minhas recentes técnicas de bordar ao lado da lareira. Até mesmo quando a família toda estava focada na televisão, assistindo o final da novela A Favorita (2008/Rede Globo). Ou quando minha tia nos ensinou um novo jogo de baralho. Eu estava certa de que seríamos massacrados, mas a batemos de lavada. Que até desistiu de prosseguir o jogo e saiu da mesa, toda contrariada.
E teve uma vez que fomos arrumar o quarto e encontramos uma aranha enorme, episódio que não foi tão engraçado, confesso. A casa encontra-se numa rua bem comprida. Cerda de 15 minutos a pé está a casa dos irmãos Mauricio e Samir, dois meninos que fizemos amizade. Mauricio é bem alto, com o cabelo bem enrolado e loiro, conhecido como Mogli, O Menino Lobo pela minha família – referência ao personagem de mesmo nome no desenho animado homônimo.
Samir era moreno e um pouco mais baixo, além de mais tímido também. Sem dúvidas o lugar onde eu e Gabriel mais aproveitamos e onde guardo diversas lembranças de brincadeiras, risadas e aventuras. A casa deles era enorme e lindíssima. Fiquei encantada com a diversidade de afazeres possíveis naquela casa, era sala dos vídeos games, rede, jogos de tabuleiro, piscina. E para ser melhor ainda, quando os conhecemos, seus primos estavam passando uma temporada lá também.

Eu não me lembro do nome de todos, mas tinha uma menina que era a Marcela, além de mais dois meninos. Foi uma das primeiras vezes que joguei vídeo game. Mas brincávamos também de esconde-esconde, rouba bandeira e pega-pega. E os jogos de tabuleiros eram a saída nos dias chuvosos. Tinha o Detetive, Uno, Banco Imobiliário e até Imagem e Ação.
Mas o mais marcante mesmo foi quando desbravávamos Cunha. Um dia fomos até um campinho abandonado bem no final da rua e me lembro que o Mauricio avisou a todos para ficarmos espertos com uma planta chamada Urtiga, que se encostássemos nela causaria uma baita coceira. E adivinha? Eu e Gabriel a tocamos. Foi quando estávamos subindo a rua para voltar para casa para trocar de roupa, pois minha mãe, Rafael e minha avó estavam preocupadíssimos, visto que eles estavam atrás de nós e não conheciam o Mauricio e toda galerinha.
Minha mãe ficou muito aflita, principalmente por conta do jeito que Mauricio estava, todo descabelado, sem camisa, descalço e sujo de terra do campinho. Mas depois de apresentados, todos ficaram mais calmos. Mauricio, guiando toda a trupe, entrou no terreno ao lado, onde havia um mato enorme e sumiu. Aí surgiu o apelido de Mogli, O Menino Lobo, pela familiarização dele com a natureza.
Entretanto, nenhum episódio daquela viagem supera o dia que entramos em uma casa que nos chamou atenção pelo barulho estranho que era emitido de seu interior. Fomos em direção ao quintal, onde o barulho se intensificava cada vez mais, e nos deparamos com um senhor de aparência pálida, rosto enfurecido, bem alto, magro com um machado grande e vermelho em suas mãos.
Quando nos viu, saiu correndo atrás de nós com machado na mão, como se fosse nos acertar. Ficamos assustados e saímos correndo. Nem no basquete, que pratico há algum tempo, corro mais do que eu corri aquele dia. O centro da cidade é o coração, ou melhor, o átrio esquerdo de Cunha porque ainda tem todo o ecossistema que completa o coração, sendo o átrio direito. O centro é antigo, mas com energias sempre novas e sempre renovando quem passa por lá.
A artéria aorta da cidade é a igreja matriz de Nossa Senhora da Conceição do Fação. Muito visitada, não apenas pelos turistas, mas pelos cunhenses também, que são muito religiosos. O prédio é todo branco, com detalhes em amarelo ferrugem e as janelas e portas azuis; cheia de palmeiras ao seu redor e uma cascata grande em sua dorsal. Entretanto, andei vendo, nos comentários de internautas nas redes sociais, que ela esteve fechada nas últimas férias.
Mas não deixa de ser um belo patrimônio e, de tanta nostalgia, eu até escutei o repicar dos sinos, ecoando por todo o centro. O Mercado Municipal, ao lado da igreja, também é bem atrativo e antigo. Sua fachada me lembra a entrada da antiga Estação Ferroviária de Sorocaba. As ruas de lajotas que compõem o centro são bem íngremes por conta das montanhas que formam a cidade. Para ir de Vila Rica ao centro, tem uma descida que é muito declivada, mas que no começo da descida você consegue ver todo o lago, o ginásio, o parque, as matas e a quantidade de fusca que se encontra por lá.
Por ser um carro de mecânica simples, rústico e barato, as pessoas os utilizam bastante. Ainda mais que é um carro que sobe ladeiras nos estilo “devagar e sempre”. Atualmente, as pessoas buscam ali a cerâmica típica da cidade, suas montanhas e cachoeiras, suas tradições religiosas e o seu jeitão caipira, no melhor sentido da palavra.
Em Cunha, não há um único semáforo. Se alguém parar o carro para dar algum recado à comadre na calçada, quem está atrás espera pacientemente.
Lá, todos se conhecem. Não é de se estranhar que um completo estranho lhe faça uma saudação: “bom dia”, “boa tarde”, “fique com Deus”. Pequenas coisas que me fazem ficar cada vez mais admirada com aquele lugar, pois em Sorocaba (SP), mais interior do estado e onde moro, a maioria das pessoas jamais responderiam o meu ‘’bom dia’’. Ainda mais eu que tenho costume de andar na rua sempre com aquele sorrisinho simpático e cumprimentar os outros com uma balançada de leve na cabeça, devem estranhar.
Certa vez, durante aquelas férias, fui com meu tio Rafael até o lago andar de pedalinho e foi tão gostoso. Ventava bastante naquele dia e o vento estava contra nós, mas eu saí tão leve daquele passeio, porque a sensação que tive foi de que o vento levava as coisas ruins de mim e ficava apenas as boas. Me senti sem nenhum peso nas costas, nenhuma pressão, nenhum problema na cabeça. Às vezes desbravávamos toda mata também e ficávamos sempre atentos aos passarinhos; até que um dia encontramos um tucano muito simpático que dava até para dar melão para ele; lhe demos o nome de Zazu.

E para o átrio direito temos o ecossistema que possibilita um ecoturismo cheio de aventuras. Primeiro tem dois parques, o Estadual da Serra do Mar – Núcleo Cunha -, e o Nacional da Bocaína, ambos com a Mata Atlântica protegida e preservada e composta de uma diversidade de fauna, flora, trilhas e cachoeiras. O problema é apenas o acesso, por conta das estradas de terra. Tive a oportunidade de visitar uma das cachoeiras mais bonitas que é a Cachoeira da Pimenta, onde o acesso é fácil e as vistas impressionantes.
Mas dependendo da temporada, a cachoeira acaba ficando muito cheia de gente. E sem dúvida nenhuma, se quiser ter uma visão deslumbrante das paisagens de Cunha e ver toda essa bonita região entre o Rio de Janeiro e São Paulo, existem vários mirantes. Um deles, e um dos meus lugares preferidos, é a Pedra da Macela, o ponto mais alto de Cunha, a 1.850 metros de altitude. Dele é permitido ver, nos dias de melhor visibilidade, até a Ilha Grande e as baías de Paraty e de Angra dos Reis. Para mim, que tenho medo de altura, achei que não iria gostar.
Mas eu simplesmente amei e não senti nem um pouco de medo. Lá eu senti a liberdade, senti ainda mais o ar puro de Cunha. Não há nada que supere o verde das copas das arvores e o azul do céu e do mar. Eu simplesmente sou apaixonada pela natureza e por todas essas sensações que me provocam. Nunca na minha vida vou esquecer desta viagem e de todos estes momentos que vivi lá.
Como a jornalista Eliane Brum observa bem em seu livro Meus Desacontecimentos, há a crença de que ou a infância é boa ou não existe. Pois fico satisfeita em dizer que, então, eu tive infância e que eu lembro dela. E assim como ela teme o mundo dela sem a palavras, eu temo o meu sem Cunha.
Cunha (SP)
A cidade já tem 159 anos de história e conta com 22 mil habitantes, segundo IBGE/2015. É uma Estância Turística cercada pelas serras do Mar e Quebra-Cangalha – diante 45 km de Paraty, no Rio de Janeiro. Foi palco de batalhas da Revolução Constitucionalista de 1932 e teve período áureo de vitivinicultura no final do século 19. O clima é oceânico e dispõe de extensa área rural. É a maior produtora de Pinhão do Estado e concentra a maior frota de Fuscas. É conhecida pela produção artesanal de cerâmicas e tem vários prédios históricos tombados. Informações: www.cunha.sp.gov.br.
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Raquel Teixeira
Tem 16 anos de histórias, lembranças, sentimentos e sonhos. Estudante, ela é o símbolo da metamorfose e representa a geração dos que acreditam na palavra. Por meio da lírica, constrói um novo trilho para um futuro melhor. Desenvolvendo a escrita pela paz, amor e humanização, ela arrisca, observa e compartilha sentimentos e histórias reais para cumprir esse propósito e alcançar a própria plenitude. (Leia mais aqui!) Foto San Paiva | Fotopoesia
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