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ELA POR ELAS - A odisseia de Néia no combate à violência contra a mulher!

  • Foto do escritor: Lilis | Linhas Livres
    Lilis | Linhas Livres
  • 9 de mar. de 2019
  • 8 min de leitura

Atualizado: 11 de mar. de 2019


Por Leila Gapy

Fotos San Paiva e Arquivo Pessoal


O sorriso fácil, a gargalhada espontânea, a simplicidade e a presteza são características de Néia Mira, 42 anos, uma paulista de Botucatu que vive em Sorocaba há quatro décadas. Tanto é que sorocabano que se preze a conhece. Na última década ela tornou-se, sutilmente, o maior nome da militância feminista na cidade e região. Sutilmente porque é tímida e modesta. Mas a atuação é relevante na formação de líderes comunitárias para combate à violência e fomento da igualdade social. E é justamente por essa razão que ela será uma das dez homenageadas pela Câmara dos Vereadores de Sorocaba, na próxima segunda-feira, dia 11, a partir das 19h, quando receberá o diploma de Mulher-Cidadã “Salvadora Lopes” – destinado às personalidades locais.


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“Eu estava com tanto medo que este ano não conseguíssemos formar uma turma, mas por fim fechamos com 70 inscritas. Tinha que ver que belezinha. Praticamente todas vieram por indicação, sabendo exatamente do que se trata o curso e com muita vontade de aprender e atuar”, disse-me ela, no último dia 1º, quando as inscrições para o 17º Curso de Promotoras Legais Populares (PLPs) foram encerradas. O tom da afirmação foi comemorativo. Também pudera, à frente da coordenação do Instituto Plena Cidadania (Plenu) – Organização Não-Governamental (ONG) para formação de mulheres líderes comunitárias -, Néia contabiliza, somente em Sorocaba, ao menos 700 mulheres capacitadas para auxílio de vítimas no acesso aos mecanismos judiciais.


Mas apesar do número expressivo da iniciativa nos últimos 17 anos, ela tem, mais do que qualquer um, a noção do quão difícil é seu desenvolvimento. Mas justamente os inúmeros obstáculos evidenciam a necessidade da proposta. Começa com a própria violência e as desigualdades estruturados socialmente, passa pelo desconhecimento das vítimas de que são vítimas e alcança a parte prática, como o custo de estrutura para manutenção do curso de PLP, que dura um ano e requer sala, com mesas e recursos multimídias. Segundo ela, o curso não é uma iniciativa sorocabana. Em São Paulo (SP), por exemplo, é amparado pelas União de Mulheres de São Paulo há quase 30 anos, ideia oriunda de Porto Alegre (RS).


Mas que está espalhada em outros países latino-americanos, a maioria com elevado índice de violência contra a mulher, a família e as crianças. “Em Sorocaba, o curso chegou em 2003 por iniciativa da professora Iara Bernardi, atual vereadora e ex-deputada federal. Mas em 2005 o Plenu foi criado para legalizar a proposta de formação e obtenção de recursos”, detalha. Por mais de 15 anos a ONG contou com sede própria, no centro, para facilitar o acesso, além de parcerias, como para pagamento de limpeza, energia, água e lanche para as alunas. E é aí que se reinicia a odisseia para que as interessadas concluam o curso, mesmo sendo desenvolvido com aulas apenas às sextas-feiras à noite. Muitas delas, com filhos pequenos, têm dificuldades para se ausentar de casa.


Outras vão para o curso direto do trabalho, sem alimentação, outras tantas não têm o dinheiro para o transporte extra. “O curso é aberto. Vêm mulheres de todas as idades (a partir de 16 anos), classes sociais e profissões. Às que solicitam, com inúmeras demandas, tentamos ajudar ou encaminhar. Sempre oferecemos 40 vagas, cerca de 50 ou 60 se inscrevem. Mas, em média, 25 concluem. Apesar disso, o básico já é custoso”, afirma. Tanto é que, neste ano, pela segunda vez, o curso será oferecido nas dependências do Sindicato dos Metalúrgicos de Sorocaba (SMetal) - no anos passado por uma questão de demanda, já que o número de alunas foi maior do que a capacidade do espaço do Plenu, este ano porque a entidade deixou de ter sede própria. Está aí a surpresa dela no elevado número de inscrições. “Se colocarmos na ponta do lápis, tanto para nós, incentivadores, quanto para elas, remamos todos contra a maré. Sem contar que os resultados, não são palpáveis”, sinaliza.

Pela concepção do curso, o objetivo é formar mulheres da comunidade em geral – seja vítima ou profissional de auxílio -, para que tenham capacidade de ir à linha de frente do enfrentamento à violência. Isso significa enfrentar o agressor de forma legal, como chamar a Polícia Militar ou ambulância, fazer o Boletim de Ocorrência ou Exame de Corpo de Delito, buscar ajuda segura, como advogado, defensoria pública, abrigo legalizado e até terapia, além de entender os mecanismos da rede de apoio, como a legislação vigente, o que é a ordem de restrição ou a violação. Segundo ela, é preciso entender o macro para que as ações mínimas sejam desempenhadas e percebidas.


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Os pais dela, Neonilde e Nelson.

Impor limites ao agressor, por exemplo, que por vezes não é físico ou sexual - o que é de fácil identificação -, mas é um abusador emocional, moral, patrimonial ou financeiro, inclusive dos filhos – que é mais difícil identificar -, demanda autoestima e empoderamento à vítima. E Néia sabe do que está falando com profundidade. Nascida num lar humilde, mas amoroso, e mesmo com todas as dificuldades ela teve estrutura para criar sua própria família junto do marido, Sergio. E apesar das coisas estarem socialmente dentro do previsto, a dificuldade de melhoria educacional e financeira passou a ser percebida com a chegada dos filhos, hoje um rapaz de 22 e uma menina de 14. Ela sabe que um dos obstáculos sempre foi o preconceito racial.


Foram várias às vezes em que percebeu desdém associado à sua etnia negra ou origem pobre, obstruindo melhores oportunidades de trabalho, e à dificuldade em fazer uma graduação, por exemplo, quando o salário é de um pedreiro e uma empregada doméstica que contam as moedas para pagar um abrigo e a comida. “Sou pedagoga porque estudei com meus filhos, já adolescentes, e entrei em programas governamentais. Muitas vezes, em estágio, ouvi comentários que não diziam respeito à mim, ao meu caráter ou currículo, mas sim ao achismo preconceituoso relacionado à cor da minha pele. Aprendi a ser forte com a minha mãe, que lutava sorrindo, sempre”, detalha. Isso sem contar nos desafios enfrentados dentro da própria casa. Um local que serviu de laboratório para entender o mecanismo cultural e social da atualidade.


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Néia entre os filhos, Juliana e Fábio.

“Venho de um lar com muitos homens, criados de forma machista. Esse ‘criados’ não diz respeito só à minha mãe ou ao meu pai. Mas à sociedade, escola, vizinhos. Algumas vezes tive que apartar brigas familiares que resultaram em processos criminais. Em outras tive que abrir meu próprio espaço, como para estudar, por exemplo, porque é mais fácil controlar aquela que só vive para a família”, pontua. É por isso que ela se sente uma vencedora, sobrevivente e resistente. “Eu disse não. Não é assim que eu quero”, garante. Mas esse limite, ela ressalta, chegou para ela já na fase adulta. Por um caso, ela foi trabalhar de faxineira na sede do Plenu. Não demorou muito, foi convidada e convencida a fazer o curso de PLP. E num instante, virou coordenadora.


Ela lembra como tudo mudou depois do processo de capacitação. “Eu não imaginava o que a lei dizia, a diferença entre Legislativo e Executivo, promotoria e defensoria. Eu nem imaginava os obstáculos de acesso à justiça. E então enxerguei o machismo e a violência estruturados em nosso modo de pensar. Foi difícil encarar, me ver como ser, como pessoa de opinião. Ainda mais que não sou de briga ou gritaria, sempre sento e choro. Aliás, sentava. Continuo chorando, mas agora em pé, lutando”, comenta. E é essa jornada sinuosa por ela vivida que justamente lhe dá a empatia necessária para acolher e apoiar as mulheres que lhe procuram. “Perdi a conta já de quantas acompanhei à delegacia, defensoria ou promotoria. De quantas ligações atendi, de quantas manifestações participei”, diz.


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Néia, a segunda da esquerda para direita, em manifestação pró-igualdade

A mais recente, vejam só, quando várias mulheres acamparam na frente do prédio da Delegacia de Defesa da Mulher de Sorocaba, favoreceu para que a DDM passasse a atender 24 horas por dia, sete dias da semana. Segundo ela, essa mobilização é desdobramento da conscientização pelos inúmeros recursos educacionais, que vão da sala de aula às redes sociais. O resultado é a visibilidade da proposta de igualdade social, que conta com a proximidade da comunidade com os agentes de atuação no mecanismo de justiça social, como policiais, advogados, médicos e educadores, que estão na linha de frente no combate à violência. “Uma prova disso é a formação dos nossos conselhos municipais, da Saúde, da Mulher, do Negro, do LGBT. Não criamos a roda, mas incentivamos os que atuam e fortalecemos a comunidade à participação”, explica.


De acordo com ela, se pensarmos em machismo e violência estruturais, entenderemos que a chave para tudo é a conscientização. “Então, quantas vidas essas promotoras já ajudaram ou salvaram, não temos como quantificar. Cada informação passada, cada ouvido dado, cada apoio fornecido às mães, irmãs, filhas, vizinhas, amigas e até desconhecida, é resultado, mas não dá para contabilizar. Embora o índice de denúncias e acesso à Justiça têm crescido, como nossa DDM, que somou seis BOs de violência na primeira noite de atuação, percebemos a necessidade da iniciativa, embora desempenhada ainda de forma singela perto do que é preciso”, pontua. É por isso que, a cada interessada que buscou pela inscrição na semana passada, ela comemorou como vitória.


Mesmo que não concluam o curso neste ano, é um número de mulher que está sabendo da existência desse recurso e anseia por aprendizado. “Acredito que fazer esse movimento em prol do outro, no caso, da outra, é uma forma de cuidar do futuro, do que deixaremos para as futuras gerações. Eu quero muito uma sociedade mais justa e com baixo índice de violência”, opina. Dá para entender o sorriso estampado sempre no rosto dela.


Homenagem

É por essas e outras que Claudinéia Aparecida de Almeida de Mira, conforme a certidão, será homenageada na Câmara dos Vereadores de Sorocaba na próxima segunda-feira, dia 11 de março, a partir das 19h. Na ocasião, a própria vereadora Iara Bernardi (PT), lhe passará o diploma Mulher-Cidadã ‘Salvadora Lopes’. O reconhecimento social às mulheres é desenvolvido pela Câmara desde 2006, por iniciativa da ex-vereadora Tânia Baccelli (PT). O objetivo é destacar e homenagear personalidades femininas com feitos civis de relevância à sociedade sorocabana. Junto de Néia, na próxima segunda, outras nove receberão o diploma: Creuza Machado de Freitas, Israelina Machado Bernardi, Ivone Gomes Castilho, Maria Lúcia Neiva de Lima, Mara Kitamura, Olga de Barros, Segunda Alves Senne, Tânia Cristina Alves e Vicentina Machado Miguel. Sem contar em outras mais já lembradas, já que em 2016, por força de resolução encabeçada pela então parlamentar Neusa Maldonado (PSDB), o diploma passou a ser entregue não a cinco, mas a dez mulheres.


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Salvadora Lopes

Salvadora Lopes Peres foi uma operária, sindicalista e a primeira vereadora de Sorocaba. Nascida em Avaré em 1918, ela chegou à Sorocaba com dois anos e começou a trabalhar ainda criança na indústria têxtil, mas em 1938, após se recusar a aceitar uma jornada de 10 horas de trabalho, participou de greve e foi demitida. Fato que a levou à militância sindical, à liderança feminina, aos 21 anos de idade, e conquistas de melhores condições de trabalho, principalmente às mulheres. Em 1947 foi eleita a primeira vereadora da cidade, mas impedida, junto de outros 13 eleitos, de tomar posse porque o PST, seu partido na ocasião, foi indeferido pela Justiça Eleitoral. Ela faleceu aos 88 anos, em 2006 e teve a vida retratada no livro Salvadora!, de Carlos Cavalheiro, e em documentário produzido por Werinton Kermes, atual secretário municipal de Cultura.


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Leila Gapy


é jornalista por formação, encantadora de memórias por vocação e professora, sua nova paixão. Idealizadora deste blogue,  é especialista em Jornalismo Literário e mestre em Comunicação e Cultura. Pesquisa texto artístico seriado e ama ler histórias reais. Tem 37 anos, é casada com Alessandro e juntos têm uma filha, Catarina, sua inspiração. Foto: San Paiva.


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