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INVISÍVEL, mas nem tanto!

  • Foto do escritor: Lilis | Linhas Livres
    Lilis | Linhas Livres
  • 17 de mar. de 2020
  • 9 min de leitura

Atualizado: 25 de mar. de 2020

***A quarta matéria da série de reportagens explica o machismo na contemporaneidade pelo olhar sociológico, antropológico e de mulheres não muito distantes***


Texto e fotos de Pâmela Ramos

Revisão de Miriã Almeida

Edição de Leila Gapy


Mulher, mãe, negra, bolsista, baixa renda. É assim que Jéssica Meira se refere a si mesma ao falar de suas lutas. Aos 26 anos, é jornalista e tem dois filhos. Todo dia, ela levanta cedo, leva os filhos à escola, vai trabalhar e depois estudar. Enfrenta o mundo cercada por opiniões sobre ser mãe, mulher e esposa. “Eu gosto quando as pessoas me desafiam, porque vou lá e consigo fazer”. Destemida, ela não tem medo de obstáculos. Não é à toa que saiu de sua cidade natal, Itanhaém, no litoral paulista, em busca de oportunidades em Sorocaba, no interior de São Paulo.


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Ela podia carregar todos os problemas nas costas e ainda assim suportar o cansaço diário e cobranças, mas nunca deixou que isso abalasse seu lado mais íntimo, aquele onde esconde suas dores e sonhos mais secretos. Chorar estava fora de questão, pois deixou muita coisa para trás. A lágrima veio por causa de uma pergunta: “Quando foi a primeira vez que você enxergou o machismo?”. A resposta chegou acompanhada de lembranças e o olhar direcionado ao chão. Ela não havia avaliado o quanto parte de sua vida fora afetada por algo que parecia invisível. “Eu acho que eu comecei a perceber o machismo, por causa do meu pai.”


Na sala de uma universidade, quatro alunos estão falando sobre trabalhos acadêmicos, enquanto no outro canto, nós conversamos. Ela abre o coração discretamente ao mencionar a mãe, mulher que para ela é símbolo de força e de luta. “Minha mãe não acredita muito no feminismo. Ela fala que feminismo é queimar sutiã (risos). Ainda assim, eu acho que ela é exemplo de feminismo porque ela mora sozinha, faz investimentos na casa, vai se aposentar, ela paquera. Minha mãe vive o agora. É livre.” Falar da mãe é uma grande satisfação para ela, porque passou parte da sua vida presenciando um casamento submisso que acabou ainda quando ela era adolescente. A separação dos pais foi algo que marcou. Uma marca que nunca foi apagada.


Ainda na adolescência descobriu o amor pela dança. Eram pelos movimentos que buscava superar os limites físicos e tentava se encontrar. Jéssica começou a participar de apresentações por meio de uma companhia de dança, em Itanhaém. Com o tempo passou a perceber que o desejo de dançar não bastava. Era preciso se enquadrar aos padrões de beleza e, por isso, não conseguia ser selecionada para todos os shows que o grupo participava.

Perceber essa realidade afetou sua autoestima. Algo que não conseguiu esquecer tão facilmente. Na mesma época conheceu o Thiago, seu atual marido. Dali nasceu uma amizade que mais tarde se tornou casamento. Seu primeiro filho, o Diogo, nasceu quando tinha 19 anos. A maturidade veio cedo e precisou encarar muitas situações com garra. “A família do meu marido falava que eu tinha que cuidar da casa e do meu filho. Mas eu queria ter uma profissão”.


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Jéssica e a mãe, na formatura em Jornalismo

Na primeira vez que tentou vestibular, estava grávida de sete meses. Ela se lembra dos olhares dos outros participantes que indicavam pensamentos, como por exemplo: “O que ela está fazendo aqui?”. Isso não a impediu de tentar fazer a prova outras cinco vezes até conseguir a tão sonhada bolsa em Jornalismo, na Universidade de Sorocaba. Mudou-se para Sorocaba (SP) com o marido e o filho Diogo em 2016. Após dois anos, descobriu que seria mãe outra vez e foi então que chegou o Davi. Ainda universitária, frequentou a faculdade de “barrigão” e mesmo com os olhares e a dificuldade em se locomover no transporte público, conseguiu terminar o curso.


“Ninguém me dava lugar no ônibus. Uma vez eu estava em pé e comecei a passar mal. Tive que ir sentada na escada. Depois desse dia, meu marido começou a pagar uma van para eu ira a faculdade”.


A mestre em Sociologia pela Universidade Pública de Napoli, na Itália, mestre em Comunicação e Cultura e doutoranda pela Uniso, professora Angélica Caniello, explica pelo ponto de vista sociológico que o machismo é um produto do meio social, consolidado e perpetuado ao longo do tempo. “Desde a infância, família, escola, igreja, os diferentes ambientes sociais e meios de comunicação reforçam papéis e padrões culturais construídos sobre o mito da superioridade masculina. Essa cultura machista é reforçada ao longo da vida, por meio de experiências posteriores”, pontua.


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Caniello aborda o machismo sob um olhar sociológico das duas revoluções - industrial e francesa, a partir da segunda metade do século 18. Nesta época, as mulheres e crianças trabalhavam até dezoito horas por dia, em um ambiente insalubre. Dessa forma, a mulher e a criança produziam menos e eram mais afetadas por doenças. Segundo Caniello, de 1830 a 1840, o Cartismo* foi o primeiro movimento de classe contra as injustiças sociais da nova era industrial, na Grã-Bretanha.




Em 1833 foi decretada uma lei de proteção ao trabalho infantil. E quem passou a cuidar da criança, em casa, foi a mulher. Essa condição de dona de casa e mãe se perpetuou até o surgimento da pílula anticoncepcional, que foi um dos fatores que permitiu à mulher ter o poder de planejar sua vida e decidir quantos filhos gostaria de ter”, detalha Caniello.

Quando Jéssica soube que estava grávida do segundo filho, ouviu muitos comentários sobre não ser uma boa mãe. Isso porque ela se dedicava a faculdade e ao trabalho, além da casa. “A família do meu marido é a favor da mulher ser apenas do lar e cuidar dos filhos. Eu percebi isso logo quando nos casamos, mas não deixei que interferisse nos meus objetivos. Aos poucos, meu marido foi aprendendo a pensar diferente da educação que teve”.

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Laís Azevedo

Do outro lado da cidade está Laís Azevedo, de 23 anos. Ela mora com os pais e trabalha como auxiliar administrativo. O que ela e Jéssica têm em comum é simples: ambas relataram que a primeira vez que perceberam o machismo foi no desempenho da educação paterna. “Não podia brincar com menino na rua, usar algumas roupas. Eu não sabia o que era, mas acreditava que não era certo”, conta Laís.


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A socióloga e antropóloga Josefina de Fátima Tranquilin detalha o machismo a partir da sociedade moderna, no qual o surgimento ocorre com o advento do capitalismo. “O Machismo é apreendido por meio do processo de socialização. Como vivemos em um sistema patriarcal, portanto, sexista, o machismo é o resultado deste processo e deste sistema”, afirma Josefina. Para a pesquisadora, muitas pessoas não enfrentam o machismo porque não sabem o que é.


Durante 25 anos, Jéssica viu sua mãe se dedicar apenas ao casamento. Seu pai é militar aposentado e tinha uma academia de musculação no andar de baixo da casa. Todos os dias, ele subia às três da tarde para tomar o café e comer o pão sovado que era cuidadosamente preparado pela mãe dela. A rotina familiar foi totalmente voltada às filhas e ao marido. “Eu vi minha mãe se ‘matando’ por nós ano após ano.” Jéssica cresceu não querendo reproduzir o que viu no passado.


E se formos mencionar tudo o que o amor suporta, não teria espaço nesta reportagem. Mas, o amor também é confundido com a privação da liberdade que esconde fatos, como o medo da exposição perante as pessoas. Laís se recorda do dia do casamento da mãe. Ela havia passado maquiagem, pois era um dia especial. “Quando meu pai a viu, ele disse: aonde você vai com essa cara? Está parecendo uma palhaça.” Desse dia em diante, a mãe de Laís nunca mais passou maquiagem.

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Caniello analisa que o ciúmes é um dos indícios que mostra o machismo na contemporaneidade. “Por trás desse aparente sentimento se esconde a ideia de propriedade. Muitos atos de violência (física e psicológica) do homem contra a mulher começam com essas pequenas manifestações”, comenta. “Você não casa com uma pessoa para machucar, para ferir e anular os sonhos dela”, conta Jéssica ao lembrar o sofrimento da mãe quando seus pais eram casados. Em 2001, após a separação, seu pai foi morar com outra mulher e logo depois, a mãe dela foi diagnosticada com câncer de mama. Ela passou por uma cirurgia para a retirada dos seios e precisou fazer quimioterapia durante cinco anos, para evitar que a doença retornasse. Em 2003, a mãe de Jéssica também descobriu que estava com o vírus Papilomavírus Humano (HPV) e corria o risco de ter câncer no colo do útero. Como prevenção, ela optou pela retirada do útero.


De acordo com Jéssica, o pai os “deixou quando mais precisávamos”. Ainda assim, a jornalista recém-formada viu a mãe sofrer com o processo de quimioterapia, com a cirurgia de retirada da mama, as viagens cansativas ao hospital, a falta de dinheiro na casa, além de toda a mudança que de um dia para o outro, aconteceu com a separação dos pais.

O que é o machismo?

Mas se o machismo é fruto da cultura e educação machista, afinal, o que é o machismo? Caniello explica no sentido literal que o termo ‘machismo’ pode ser traduzido como uma atitude de quem não aceita a igualdade de direitos e respeito entre o homem e a mulher, achando que o homem é superior. Em cada linha de pesquisa, seja histórico, antropológico ou sociológico, o machismo surge em diferentes esferas e épocas.


Para reconhecer onde está, basta observar. “É possível identificar o machismo em vários âmbitos como, por exemplo, na desigual retribuição salarial, no assédio moral e sexual, entre outros.” conta Caniello. Em ambas as entrevistas com as pesquisadoras Caniello e Tranquilin, a resposta para a pergunta de como se combate o machismo, foi pela educação.

Jéssica tem dois filhos pequenos em casa e tem como desafio educá-los para não serem machistas, mas não teria culpa caso eles crescessem e se tornassem.


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“Minha avó não era machista, mas meu pai sim. Não adianta tentar educar para não ser, quando a sociedade lá fora é.” Mesmo com a preocupação com futuro incerto, ela segue com a convicção que está tentando evitar isso de alguma forma. “A educação é fundamental, pois quanto mais consciência crítica temos do patriarcado, mais conseguiremos deter o machismo. Porém, neste sistema de educação que temos hoje, não conseguiremos. Temos que mudar a Educação, primeiro”, afirma Tranquilin.


Seja pelo padrão de beleza, pela educação quando criança, casamento submisso e tantas outras formas de manifestações. Ainda assim, Caniello analisa que hoje, a mulher está percorrendo caminhos antes limitados a ela. Primeiro com a conquista do direito ao voto, acesso a cargos políticos, não obrigatoriedade de se casar, de sentir prazer sem culpa e entre tantas outras frentes sendo trilhadas. “O machismo é um grande fardo para homens e mulheres. O dia em que a sociedade superar essa ideologia, todos sairão ganhando!”, finaliza Caniello (LL).


*Cartismo:
Movimento popular que começou em 1830, na Inglaterra, no qual os operários buscavam por meio da política, a igualdade e democracia. As reivindicações feitas pela Carta do Povo e por marchas foram negadas pelo Parlamento em 1839. As mudanças propostas na Carta indicavam o direito ao voto universal masculino, voto secreto, candidaturas de trabalhadores e entre outras.

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MAKING OF:

Escrever sobre o machismo quando se é mulher não parece um desafio logo no começo. Entrevistei pessoas que já conhecia e isso trouxe uma segurança com o tema. Porém, quando entrevistei a Jéssica pela primeira vez, percebi logo de cara que aquilo me afetava mais do que eu imaginava. Ela me contou o que sentia e confiou em mim. Eu passei a notar coisas em comum que tínhamos durante a nossa trajetória de vida e os aprendizados que eu poderia adquirir dali. É uma história cheia de altos e baixos que não poderia permanecer no anonimato, enquanto muitas outras mulheres possam estar passando por situações parecidas ou se identificar com aspectos presentes na reportagem. Quando falei com a Laís, ela dizia que não sabia falar sobre o machismo direito, porque não tinha conhecimento de referências acadêmicas para isso. Mas foi no percurso da conversa que ela notou o quanto cada detalhe era uma manifestação do machismo. Ainda assim, me surpreendi com respostas e me emocionei em ter este contato mais profundo. Sentir o outro ainda que não tenha tido as mesmas experiências, e buscar inserir isso na escrita, é também desvendar possibilidades e conquistar aprendizados não só com as pessoas, mas com a vida (Pâmela Ramos).

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***Esta é a QUARTA matéria da SÉRIE DE REPORTAGENS - FEMINISMO

- 1ª matéria: No olho do furacão! (Por Nicole Bonentti);

- 2ª matéria: A criminosa violência psicológica! (Por Leila Gapy);

- 3ª matéria: Amiga: fica esperta! (Por Leila Gapy);

- 5ª matéria: Uma resposta chamada Feminismo! (Por Isabela Dantas);

- 6ª matéria: Elas por todas nós! (Por Isabel Rosado).


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Pâmela Ramos


É um conjunto de histórias e sonhos que tem sua essência na música e na vontade insaciável de registros em textos e imagens. Aspirante à fotógrafa, estudante de Jornalismo, aos 19 anos busca eternizar em palavras o que é invisível ao olhar e à fotografia o que, muitas vezes, não se enxerga. Realiza pesquisa em Fotografia Poética e participa de ações sociais de voluntariado. Portfólio de Pâmela aqui! Foto San Paiva | Fotopoesia.


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