NÉIA MIRA!
- Lilis | Linhas Livres
- 1 de out. de 2018
- 5 min de leitura
Atualizado: 2 de out. de 2018
Fotos San Paiva
Fui única filha mulher entre três filhos homens até os meus 14 anos de idade. Na certidão, há 41 anos lá em Botucatu (SP), meus pais, Nelson e Leonilde, colocaram Claudineia Aparecida de Almeida de Mira – mas o Mira é do marido. Juntos temos o Fábio, de 22 anos, e a Juliana, de 14. Em breve serei pedagoga, mas já ensino há nove anos a militância pela igualdade.

Como disse, quando eu tinha 14 anos minha mãe nos deu de presente a Camila, a caçula da casa. Ela foi tão esperada por mim que me revoltei quando meu pai disse que teria nascido um menino. Depois ele desmentiu. Mas chorei muito, vibrei e voltei a arrumar a malinha simples dela, com o enxoval que a mamãe conseguiu fazer. Confesso que já estava farta de ter tantos homens na casa e nenhuma irmã.
Minha mãe tinha que trabalhar para ajudar a manter a casa e praticamente quase todo o resto dos afazeres sobrava para ela. Sendo assim, eu cuidava dos meus irmãos e da nossa mais nova bebê. Neste período eu já tinha concluído o Ensino Fundamental e não entrei no Ensino Médio porque precisava “ajudar” a minha mãe em casa. Após dois anos consegui retornar para a escola, mas por determinação minha.
Passaram-se alguns anos e minha mãe adotou uma menina linda, de seis meses de idade, a Brenda. Outra alegria! Aumentou meu time feminino naquela casa. Apesar de já estar casada e já ser mãe do Fábio e da Juliana (nascida no mesmo ano em que a Brenda nasceu), assumo que quando nossa mãe disse que iria busca-la fiquei um pouco preocupada com as circunstâncias que envolvem a adoção.
Mas depois de ver aquele rostinho de anjo, só consegui sentir amor. Nosso anjo de cachos dourados era bochechuda. Ela recebeu, e ainda recebe, muito amor. Trabalhei como diarista por muitos anos e em um dos meus empregos conheci o curso de Promotoras Legais Populares (PLPs) – desenvolvido pelo Instituto Plena Cidadania (Plenu) -, uma iniciativa sem fins lucrativos que visa empoderamento feminino por meio da educação e que tem como maior objetivo a luta contra a violência à mulher.
O projeto capacita as mulheres com aulas sobre direitos, leis e recursos para cidadania, entre tantos outros temas. Fiquei na dúvida se faria ou não o curso porque me sentia incapaz de acompanhar o desenvolvimento por conta dos cuidados com os filhos, com a casa e meu emprego. Pensei que não daria conta e nem que minha família aceitaria a audácia. Me irritava pedir permissão em casa, mas acreditava que era minha obrigação.
Por fim, naquela ocasião decidi não pedir permissão. Apenas falei que iria fazer um curso e expliquei resumidamente sobre o que seria. Tive resposta negativa, com a justificativa de que iria perder meu tempo. Mas teimei e fui. Durante o curso aprendi muito sobre diversos assuntos, um dos pontos que mais me apeguei foi a alarmante violência contra as mulheres.
Pois veja, vim de uma família machista. Durante anos me ensinaram, e eu acreditei, que os homens ditavam as regras e eram as cabeças das casas. Mas nunca aceitei, nem concordei com essas regras. Até que com o passar do tempo, no curso, aprendi que eu poderia sim, tomar as rédeas da minha vida. E que só precisava colocar em prática o que aprendi. Descobri então que eu já era feminista e nem sabia.
Quando terminei o curso pensei: “Meu Deus! E agora?”. Me senti sem chão, mas com as informações armazenadas. Até que um dia, no momento certo, fiz minha primeira atuação como PLP. Estive em uma delegacia por um motivo que não era nada grave e me deparei com uma mulher vítima de violência, que recebeu mau atendimento no balcão. Com orientações distorcidas do que eu tinha aprendido no curso de PLP.
Naquele momento fiquei nervosa. Pensei comigo que não poderia me calar, mas estava insegura. Pensava na reação dos que estava ali presentes, na recepção da Polícia Civil. Mas me lembrei das orientações que recebi durante o curso e vendo aquela mulher sair de cabeça baixa, punhos machucados, olhos cheios de lágrimas por não ter recebido ajuda, nem orientação adequada, não aguentei.
Chamei-a num canto e a orientei de forma correta. Ela me ouviu atentamente e agiu conforme minhas orientações. Por fim, foi atendida. Depois desse dia cresceu dentro de mim, com mais força, o espírito de promotora legal. Em 2009 fui convidada por Eugênio Carlos Fattori, Maria Isabel Martinês e Iara Bernardi - membros do Plenu -, para fazer parte do projeto de capacitação das PLPs no auxílio à coordenadora do curso da época, a querida advogada Maura Roberti, já falecida. Aceitei.
Acompanhei todo trabalho e aprendi como era desenvolvido o processo de formação das promotoras. E em 2010 a coordenadora precisou se afastar e acabei fazendo parte da coordenação com Maria Isabel Martinês. Nesta época eu ainda tinha vergonha de falar, de estar na frente das pessoas, pois antes minha atuação era de bastidores, de acompanhamento e suporte em algumas tarefas.
Tive medo, não me sentia capaz de dar continuidade no lugar de uma pessoa tão experiente na execução do projeto, mas fui fortalecida pelos membros, que apostaram na minha capacidade de aprender mais e multiplicar os conhecimentos adquiridos fortalecendo, assim, outras mulheres. E foi possível ajudar muitas outras pessoas de lá pra cá.
Depois iniciei alguns trabalhos em movimentos organizados de mulheres e Conselhos de Direitos para poder aprender mais sobre estas questões de violência, onde atuo até hoje. Engraçado pensar nesse processo de transformação, porque, apesar de ser feminista e depois promotora, só voltei a estudar recentemente. Sempre incentivávamos as mulheres que não concluíram os estudos a retomá-los.
Mas eu mesma não ia! Então há quatro anos fiz o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e, acredite, com 38 anos voltei para a sala de aula. Consegui estudar graças ao resultado da nota que obtive no exame, o que me possibilitou conquistar a bolsa integral do Programa Universidade para Todos (Prouni). Importante dizer que o curso me fez ter uma visão de mundo que eu não tinha.
A lutar por direitos que eu nem sabia que existiam. Mas também expos uma força que eu sabia que me pertencia. Esse movimento e transformação dentro de mim mostra quem sou, faz parte de mim essa lita incessante pela igualdade, pela educação e respeito. Pela liberdade e pela emancipação humana. Não vejo sentido ser diferente e reconheço no meu passado os passos que dei até chegar aqui.
Desde então, meu lema tem sido o trecho do verso da poesia feita por Tião Simpatia:
Dizia o velho ditado
Que “ninguém mete a colher”.
Em briga de namorado
Ou de “marido e mulher”
Não metia... agora, mete!
Pois isso agora reflete
No mundo que a gente quer.
Eu quero um mundo onde existam direitos iguais para todas e todos!
***

Néia Mira
Mulher guerreira de origem simples e família grande, aprendeu cedo a lutar pela vida e a mediar conflitos. Além de esposa, mãe, amiga e apaixonada por crianças, é também militante feminista e pacificadora educacional. Além de estudante quartanista de pedagogia, é coordenadora do curso de capacitação de Promotoras Legais Populares (PLPs) do Instituto Plena Cidadania (Plenu) e tem como foco a educação emancipadora como forma de combate à violência contra as mulheres.
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